quinta-feira, 2 de abril de 2015


02 de abril de 2015 | N° 18120
L. F. VERISSIMO

Abismos

Ninguém está livre de tentações absurdas. De, subitamente, surpreender a si mesmo com um ato inexplicável ou ceder à sedução do abismo. Uma pessoa “normal”, seja isto o que for, resiste às tentações. O ato doido imaginado nunca passa disso, imaginação. Ou então seu mergulho no abismo é um gesto solitário, sem efeitos colaterais.

O moço que jogou aquele avião contra uma montanha na França (até o momento em que escrevo não apareceu nenhuma outra explicação para a tragédia) levou 150 pessoas com ele para seu abismo particular. Ele teria problemas psicológicos, mas nada que o impedisse de comandar um avião, segundo a Lufthansa. Pelo menos para a Lufthansa, ele era uma pessoa “normal”.

Só se pode especular sobre a sua ação. Como não tinha como prever a saída do piloto do seu lugar, ele provavelmente não havia planejado fazer o que fez. De repente, se viu sozinho na cabine de comando, com o avião nas suas mãos. Talvez tenha se autoinebriado com a enormidade do que poderia realizar. 150 pessoas, 150 destinos – nas suas mãos.

Não seria uma simples autodestruição, mas um suicídio compartilhado, uma obliteração em massa. Nos poucos minutos que durou a queda induzida do avião, ele deve ter se sentido como um deus, todo-poderoso e sem remorso. Mas sabe-se que sua respiração não se alterou durante a queda. Ele foi “normal” até o fim.

Estamos todos nas mãos de pessoas “normais”, das quais nunca se espera que nos carreguem junto para seus abismos. Pode ser um piloto suicida, ou alguém que de uma hora para outra aparece armado e já chega atirando, e depois todos comentam como ele parecia ser um cidadão pacato. Ou pode-se imaginar loucuras mais altas.

O presidente dos Estados Unidos numa crise de depressão, ou o seu equivalente na Rússia depois de esvaziar uma garrafa de vodca, olha o botão vermelho sobre a sua mesa com o qual pode lançar um ataque nuclear que o outro responderá com a mesma potência, para destruir o mundo também em poucos minutos, e se pergunta: “Por que não?”. E aperta o botão, depois de trancar a porta para ninguém entrar. Por que não?


Li que concluíram que a ação do copiloto não foi um ato terrorista. Errado. O moço podia não ser um terrorista, mas foi o terror que derrubou o avião. O terror de que qualquer um é capaz, à beira do seu abismo. Mesmo pessoas normais, com ou sem aspas.

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