23
de abril de 2015 | N° 18141
DAVID
COIMBRA
O cachorro
Vírgula
Quando
Eva anunciou, entre dentes, “ou o cachorro, ou eu!”, Eric não teve dúvidas:
ficaria com o cachorro.
Amava
aquele cachorro. Em sua companhia, sentia-se da melhor maneira que um homem
pode sentir-se: sentia-se de novo um menino. Vírgula, esse o nome do cachorro,
por causa do formato do rabo, Vírgula era um pastor alemão grande, leal e
carinhoso, exatamente o contrário de Eva, uma mulher miúda, às vezes áspera,
sempre crítica.
Vírgula
adorava seus amigos. Eva os odiava.
Vírgula
era popular entre os vizinhos. O menino que morava na casa ao lado, Tiaguinho,
brincava com ele e o levava para passear de manhã, quando Eric estava
trabalhando. Eva nem cumprimentava os vizinhos, e Tiaguinho sentia medo dela.
Vírgula
estava sempre pronto para o que Eric quisesse fazer, fosse ficar em casa, fosse
dar uma volta na quadra, fosse ir para Paris, se um dia pudessem ir a Paris.
Não interessava, Vírgula gostava de tudo. Eva não gostava de nada.
Verdade
que ele não fazia sexo com Vírgula, mas o sexo com Eva também já não era mais
essas coisas. Além disso, para Eric, a humanidade superestimava o sexo. A maior
parte dos sacrifícios e desatinos das pessoas, neste mundo, acontece por causa
do sexo, que, ao fim e ao cabo, não passa de um prazer fugaz. Um jantar simples
e bem feito, digamos, uma massa à bolonhesa coberta de queijo parmesão,
acompanhada de um tinto honesto, esse prato barato pode fornecer mais
satisfação, durante mais tempo, do que uma sessão de sexo acrobático com a
Megan Fox. A diferença é que o sexo com a Megan você conta para os amigos; a
massa, não.
Sim,
o sexo é valorizado em demasia. Eric podia ficar longo tempo sem sexo. Mas não
conseguia ficar uma semana longe de Vírgula. Quando estava trabalhando, Eric às
vezes pensava na volta para casa, no momento de chegar e ser recebido por
Vírgula. O cachorro expressava alegria genuína ao reencontrá-lo. Pelo abanar
frenético do rabo e por seus olhos molhados, Eric via que Vírgula sentira sua
falta. Eva, não. Eva esperava-o sentada diante da TV e, antes que ele pudesse
falar Cucamonga, ela já estava vomitando os problemas do seu dia agitado e
fundamental para os rumos da humanidade.
Eva
era jornalista. Durante a convivência com ela, Eric havia aprendido a desprezar
jornalistas. Não os odiava: eles apenas o aborreciam. Estavam sempre julgando
tudo e todos. Mas isso nem era o pior. O pior era quando manifestavam seu amor
por pobres e oprimidos e escreviam textos supostamente poéticos sobre isso no
Facebook. Eric sentia vontade de vomitar.
Eric
não passava de um funcionário público, não tinha feito faculdade, não se podia
dizer que ganhasse um bom salário, mas isso não significava que se sentisse
oprimido, que achasse que os bem-nascidos eram melhores do que ele ou
privilegiados em relação a ele, ou que ele era vítima. Não. Eric estava
contente com o que tinha, sua pequena casa, seu emprego, seu carro usado e,
sobretudo, seu cachorro.
Não
sentia a mínima vontade de se manifestar contra ou a favor de nada, pouco se
lixava para quem era o presidente, só votava porque era obrigado, não achava
nem bom nem ruim que tivesse beijo gay na novela e ficava com sono quando ouvia
os amigos jornalistas da sua mulher discursando em mesa de bar contra os preconceitos
da sociedade hipócrita e conservadora. Um deles, um colunista, o irritava em
especial, porque Eric tinha certeza de que era um gremista enrustido, e Eric
era um colorado assumido.
Eric
queria viver a sua vida sem ser incomodado. Por isso, considerou atraente a
ideia de Eva ir embora e ficarem só ele e Vírgula em casa. A paz! Sim, isso
poderia significar a paz. Olhou para Eva, pronto para responder:
–
Vou ficar com o cachorro.
Achou
que tudo se arranjaria a contento com aquela resposta. Mas estava enganado. As
coisas ficaram bem ruins para ele. E piores para Vírgula. Saiba como ficaram...
amanhã!
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