quarta-feira, 8 de abril de 2015


08 de abril de 2015 | N° 18126
DAVID COIMBRA

Todas as galinhas do mundo

Existem 25 bilhões de galinhas no mundo.

Como sei desse número assombroso? Cito a fonte: o ótimo livro Sapiens, de Yuval Noah Harari, lançado há pouco pela L&PM.

É muita galinha. Em geral, as galinhas fazem um filho por dia. O que significa que, se não comêssemos frango, coraçãozinho, omelete, gemada e ovo frito, em dois dias haveria 50 bilhões de galinhas, em três, 100 bilhões, e, em uma semana, mais de 1 trilhão de galinhas estariam cacarejando pelo planeta.

É assustador.

Não sei como ninguém jamais pensou em fazer um filme de terror: GALINHA! Porque, pense: com essa quantidade de galinhas no mundo, é óbvio que os mecanismos da evolução seriam postos em funcionamento – não há pé de milho suficiente na Terra para alimentar tanta galinha. Elas, então, buscariam fontes de alimentação mais nutritivas, como proteínas. Ou seja: carne. Ou seja: nós. Sim! Galinhas carnívoras e ferozes passariam a atacar os seres humanos e logo tomariam conta do planeta.

O que quero dizer com isso é que o abate de galinhas não é algo ruim. Ao contrário: pode ser preventivo. Portanto, não sou contra o sacrifício de galinhas, sobretudo as pretas, nos rituais das igrejas de matriz africana, desde que elas não sofram no processo.

Isso, a morte de uma galinha sem sofrimento, isso é possível. Sou testemunha. Minha avó matava galinha com destreza e frieza de assassina profissional. O que, de certa forma, ela era. Escolhia uma galinha mais gorda e de aparência tenra, caçava-a pelo pátio da sua casa nos Navegantes, colocava-a debaixo do braço direito e, com o esquerdo, ela que era canhota, torcia o pescoço do bicho. Era uma torção só, crec!, e a galinha morria sem um único có. Um fim misericordioso.

Um domingo, ela queria fazer a tradicional galinha com arroz, chamou meu pai, apontou para uma que ciscava perto das hortênsias e pediu:

– Tu podes matar aquela lá, para eu preparar agora?

Meu pai se chamava Gaudêncio. Era do Alegrete. Usava bigode. Ou seja: macho. Não ia hesitar em matar uma mísera galinha.

Minha avó trouxe a penosa e a depositou em seus braços. Era uma galinha branca, muito calma, diria até doce. Meu pai ficou olhando em seus pequenos olhos de ave. Ela piscou. Fez com a garganta aquele som rouco e preguiçoso que as galinhas fazem. Meu pai estremeceu. Houve algo, naquela insignificante galinha, que lhe tocou o coração. Terá ele pensado nos pintinhos que ficariam órfãos?

Terá ele pensado no galo que ficaria viúvo? Terá ele cogitado a possibilidade de a galinha também acalentar sonhos e projetos, como acalentam os humanos? Não sei. Só sei que seus braços poderosos, que na estância do tio pegavam touros pelas guampas e os submetiam no solo, só sei que aqueles braços tremeram.

Todos olhavam para o meu pai. Minha mãe, minha avó, minha madrinha, meu avô, todos, e ele não podia falhar.

Fechou a mão em torno do pescoço da galinha. Preparou-se para quebrá-lo. Encheu os pulmões de ar. Mas a galinha, então, o encarou com tanta ternura aviária, que ele deixou cair os ombros, suspirou e apertou os lábios. Não conseguia. Simplesmente não conseguia! Ao que minha avó, tomando-lhe a galinha das mãos, resmungou:

– Mas é um fresco mesmo!

E, crec!, partiu-lhe o pescoço de um golpe.


No almoço, a galinha com arroz estava ótima, mas meu pai comeu em silêncio.

Um comentário:

Emanuel disse...

Não consegui deixar de pensar na Clarice Lispector. Ótima crônica!