sábado, 11 de abril de 2015


12 de abril de 2015 | N° 18130
LUÍS AUGUSTO FIECHER

Uma rodada pelo mundo

Um famoso estudo do Pierre Bourdieu mostra, de passagem, que quanto mais provincianos, mais os jornais têm notícias locais, e vice-versa, quanto menos identificados com o local, mais os jornais falam de coisas do estrangeiro. Verdade trivial, que não se resume à distância entre cidades e países – dentro de uma mesma cidade grande, por exemplo Paris, há jornais que só falam de futebol e da política local.

Tomo um exemplo prático. Vivendo na França, assinei um jornal cosmopolita local, o Le Monde. Textos excelentes e cobertura internacional magnífica, é jornal de uma capital mundial, escrito por e para gente que sabe que lhe cabe pensar em escala ampla.

Vejamos a edição do dia 3 de abril. Uma das maiores matérias fala sobre a guinada política à direita. Mas há textos sobre a seca na Califórnia, o caso do avião alemão em que morreram 150 pessoas, o tema da energia nuclear no Irã, todo um recorrido sobre a crise na Ucrânia. Parecido com os grandes jornais brasileiros, salvo pela abrangência, profundidade e detalhamento das matérias, sempre feitas por correspondentes do próprio jornal, com apuração dos fatos in loco.

Mas não é só no espaço que vai longe o jornalismo não localista; é também no tempo. A mesma edição trazia matérias detalhadas sobre três questões, três objetos, três tempos tão distantes para o cotidiano de um brasileiro, que chegam a dar certa falta de ar para um leitor como eu.

Com chamada de capa, uma versava sobre a restauração da megafamosa escultura Vitória de Samotrácia. Oito milhões de visitantes a admiram, cada ano, no alto de uma das principais escadas de acesso ao Louvre. Agora repuseram suas asas e a recuperaram, ao custo de, arrâm, 4 milhões de euros. A matéria elucida vários aspectos de sua história (foi descoberta por um francês na Samotrácia, em 1883, e enviada ao museu parisiense) e lembra que ela é uma, apenas uma das estátuas dedicadas a Nike – não diga naike, mas nikê –, a deusa da vitória.

Outra reportagem dá conta de “Little foot”, um fóssil de hominídeo que acaba de ser reavaliado em sua antiguidade – ele tem 3,67 milhões de anos, datação publicada agora, em abril. A África do Sul, onde se achou o material, entra de novo na rota do debate sobre os começos da humanidade. Descoberto em 1994, o esqueleto só foi todo desenterrado em 2010, e sua importância se deve ao fato de guardar 90% do corpo original, algo raríssimo e central para os estudiosos elucidarem umas quantas dúvidas sobre o nosso passado remoto.

Das três viagens aos tempos antigos presentes em grandes reportagens nesta edição, a que mais me pegou pelo fígado versa sobre pilhagem. Dezenas de milhares de objetos de arte foram roubados de sítios arqueológicos no Iraque e na Síria, na última década. Alguns provêm de entre o terceiro e o quinto milênios antes de Cristo. Fico sabendo que, depois da segunda guerra do Golfo, em 2003, a União Europeia interditou o comércio de materiais iraquianos, e depois de 2013 essa interdição se estendeu aos oriundos da Síria. Mas bem, contrabando continua existindo. A CIA estima que o Estado Islâmico, a organização terrorista que sombreia o horizonte da humanidade, terá movimentado entre 6 e 8 bilhões de dólares com esse comércio ilegal.

Uma burguesa semiculta de um rincão estadunidense, digamos, compra uma lamparina de 3 mil anos de um leiloeiro inescrupuloso, e com isso alimenta a máquina de guerra em que, numa dessas esquinas da vida, seu filho vai lutar.

Nas quintas-feiras como o dia 3 de abril, o Le Monde tem um caderno de livros, com resenhas e críticas. Neste dia, trazia também um dossiê sobre questões relativas a bibliotecas na França. O tom geral é festivo: mostra que as bibliotecas do país estão se aparelhando para oferecer seus préstimos também aos domingos, e com wi-fi livre (eles pronunciam “uifi”) e tudo que a tecnologia informática tem de bom. Isso, celebra a matéria, ajuda na coesão social.

Mas uma voz se levanta em contrário: uma experiente bibliotecária, que sob pseudônimo publicou agora um livro, O Crepúsculo das Bibliotecas, não é favorável à abertura aos domingos, nem à obsessão por informatizar tudo. Para ela, essas novidades significam uma ruptura com a civilização do livro e uma rendição à lógica do acesso ilimitado a tudo, a qualquer hora. Consumismo, em suma.


Coisas difíceis de pensar, para nós, no Brasil, que quase nem bibliotecas tradicionais temos, e que vivemos num autocentramento narcisista que muito contribui para a pobreza do debate público.

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