segunda-feira, 6 de abril de 2015


06 de abril de 2015 | N° 18124
L. F. VERISSIMO

Liberdade

Lennie Tristano foi um pianista cego que seguiu uma espécie de afluente da corrente principal do jazz moderno. Era um vanguardista – talvez mais avançado do que os outros –, mas nunca incluído entre revolucionários da época como Bud Powell e Thelonious Monk, para ficar só nos pianistas. Liderou um grupo experimental cujos nomes mais conhecidos eram os dos saxofonistas Lee Konitz (que hoje, com quase 90 anos, ainda vive e toca) e Warne Marsh, e em 1949 o grupo gravou duas faixas, chamadas Intuition e Digression, que são os primeiros e únicos exemplos de execuções livres, completamente livres, na história do jazz.

Os músicos tocariam no tom que quisessem e no andamento que bem entendessem, e simultaneamente. As gravações são hoje consideradas precursoras do que mais tarde se chamaria “free jazz”, feito por Ornette Coleman, Archie Shepp e outros, mas nada no “free jazz” foi tão longe quanto a experiência de Tristano. E nunca mais se fez nada igual porque o resultado das duas faixas foi cacofonia pura. Interessante, mas para se ouvir uma vez só.

O jazz se presta a romantizações equivocadas. Como sua essência é o improviso, é comum festejá-lo como uma exaltação da liberdade sem limites. Mas, como as gravações totalmente livres de Tristano provaram, a liberdade pode ser mal entendida. O maior valor de um improviso é a sua relação com uma estrutura existente – Charlie Parker destruindo uma melodia e a reconstruindo à sua maneira, livremente, mas sem desrespeitar a sua progressão harmônica.

A genialidade de um grande músico de jazz, ou de qualquer outro tipo de música improvisável, se define nessa capacidade de fugir criativamente da melodia sem traí-la. O próprio Lee Konitz, que participou da experiência de Tristano, era, e ainda é, um exemplo de até onde se pode ir num improviso sem abandonar a coerência musical.

O exemplo de Tristano serve para outras artes. Picasso aprendeu tudo que precisava saber sobre estrutura e forma na sua fase acadêmica, o que o libertou para enlouquecer no resto da sua obra, e ultrapassar limites sem perder um senso básico de harmonia. James Joyce levou a criação literária a um limite extremo em Ulysses, que, na sua estrutura e nas suas alusões a clássicos e mitos, mesmo com sua linguagem revolucionária, mantém, por assim dizer, os seus pés no chão. Já em Finnegans Wake, Joyce, como Tristano, foi longe demais. Não vamos chamá-lo de cacofônico, mas chegou perto.


Não consegui ler mais de três páginas de Finnegans Wake. Mas talvez o problema seja meu. Também nunca mais ouvi as gravações livres do Tristano para ver se tinha perdido alguma coisa na primeira e única audição. Agora não tenho mais idade para tentar de novo.

Nenhum comentário: