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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
27 de janeiro de 2011 | N° 16593
L. F. VERISSIMO
Remissão
Uma única catedral gótica ou uma única cantata de Bach redimem a religião de todos os seus males. Ou não. Você pode atribuir a beleza da igreja e da música à devoção religiosa e perdoar as barbaridades que a mesma devoção inspirou através da História, ou concluir que uma coisa não determinou a outra – Bach seria Bach mesmo sem a devoção – e apenas se admirar de que tenham sido simultâneas.
Escolha: a arte religiosa se nutriu da violenta história do cristianismo ou floresceu apesar dos seus conflitos, para compensar a violência? Pode-se até imaginar uma tabela de remissões. Quantos anos de obscurantismo e fanatismo da Igreja são absolvidos pela Pietá do Michelangelo, por exemplo? Só o Réquiem do Mozart basta para desculpar a Inquisição?
Tudo depende do olhar. Há quem olhe as pirâmides do Egito e veja um fenômeno arquitetônico e um triunfo do empreendimento humano. Outros só veem o sofrimento dos escravos pela maior glória de senhores insensíveis. Há quem olhe a fachada de uma catedral antiga e sinta seu espírito se enlevar, há quem veja na sua imponência apenas uma declaração de poder.
No seu livro Cultura e Imperialismo, o crítico Edward Said escreveu sobre a relação, às vezes inconsciente, do romance europeu com o colonialismo a partir do século 19. Seu exemplo mais comentado é um estudo sobre Mansfield Park, de Jane Austen, em que ele ressalta a importância para a vida na mansão descrita pela autora, que dá título ao livro, de uma plantação no Caribe.
Em nenhum momento do livro de Austen é sugerido que a família seja cúmplice do imperialismo, e muito menos que seu estilo de vida dependa de escravos, mas a tese de Said é que em boa parte da literatura feita na Europa na época – inclusive singelas histórias de donzelas pastorais vivendo o drama de arranjar marido – esta interdependência está implícita. Depende do olhar de quem a lê.
Como no caso de catedrais e cantatas, a literatura produzida na Inglaterra e na França principalmente (e Portugal e Espanha, já que estamos falando de colonizadores) redime ou não redime o crime, neste caso da conquista imperial.
Vendo uma mansão inglesa em meio a um idílico parque de grama perfeita, você pensa em Jane Austen ou pensa nos escravos? Escolha: a arte religiosa se nutriu da violenta história do cristianismo ou floresceu apesar dos seus conflitos, para compensar a violência?
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