segunda-feira, 17 de janeiro de 2011



17 de janeiro de 2011 | N° 16583
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Pesadelos das personagens

Não apenas nós, efêmeros, temos pesadelos. As personagens de ficção também. Isso ocorre com dois notáveis figurantes da literatura lusófona: Brás Cubas, do romance de Machado de Assis, e Gonçalo Mendes Ramires, de A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós.

O primeiro narra seu pesadelo, ou delírio, logo após a visita de Virgília ao seu leito de morte, pouco antes de ele expirar. Uma coisa terrível, esse pesadelo: sucessivamente Brás Cubas transforma-se num barbeiro chinês, depois na Suma Teológica.

Na sequência, um hipopótamo o conduz aos confins dos séculos, fosse isso o que fosse. Atravessam planícies geladas de neve, o frio a cortar os ossos, até que chegam frente a uma imensa figura de mulher, solene, que lhe diz (demos a palavra ao defunto-autor):

– Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Só então, pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas.

Era a morte.

Já o pesadelo de Gonçalo Mendes Ramires não tem esse matiz metafísico. O homem apenas tem uma indigestão. Jantou mal e, agora, sofre as consequências. Nessa noite assombrada, Gonçalinho sonha com dois amigos que rompem as paredes, vestindo cotas de malhas, cavalgando duas tainhas assadas e estocando, com suas lanças, o pobre do Fidalgo da Torre.

Aparece também um antepassado, D. Gonçalo, morto, com seus ossos rangendo dentro da armadura, a lhe desferir murros nos rins.

Curioso: em Machado, a montaria é um hipopótamo; no Eça, são tainhas assadas.

Personagens também saem da realidade da sua ficção. Como nós mesmos saímos da ficção que muitas vezes é nossa vida e caímos na inexorável realidade.

Na semana passada, a paródia da volta-ao-Grêmio-do-filho-pródigo – que a alguns fez sentirem-se cavalgando uma espertíssima raposa – acabou ao raiar do sétimo dia. E a realidade, a bendita realidade, retomou seu legítimo posto.

Bem melhor do que qualquer pesadelo, pois não?

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