sábado, 29 de janeiro de 2011



29 de janeiro de 2011 | N° 16595
CLÁUDIA LAITANO


O melhor banho da temporada

Memórias de infância parecem aleatórias, desconexas, mas são tudo menos isso. O que nos faz guardar uma determinada cena, entre outras tantas possíveis, fala mais sobre nós do que a lembrança em si. As memórias que permanecem, por mais banais que pareçam, constroem uma narrativa, um romance – que é aquele da nossa vida recontada e reordenada.

Algumas lembranças, as que servem melhor a esse propósito, parecem feitas de uma matéria mais permanente do que todas as outras.

Houve uma vez um banho de mar, de um verão qualquer do início dos anos 70, que sobreviveu intacto na minha memória em meio a uma nebulosa de experiências parecidas que não mereceram a distinção da permanência. Por que esse e não outro? Provavelmente porque desse eu gosto de lembrar.

As famílias mudaram muito nesses anos todos, e uma das coisas que mais mudaram foi a multiplicidade de formações e rotinas das famílias. Com mães que trabalham fora, casais que se separam e veem os filhos em dias combinados, novos casamentos e parentes multiplicados, as famílias se dão ao luxo de “customizar” seus hábitos muito mais do que se fazia antigamente.

Naquela época, a rotina caía bem, tanto na cidade quanto na praia. De modo que se reproduzia nas férias uma versão um pouco mais relaxada da ordem doméstica. Como se algum fiscal de costumes fosse checar se estávamos mesmo almoçando e jantando na hora certa, mesmo sem compromisso nenhum com o relógio para cumprir. Bom, pelo menos lá em casa era assim.

Chegávamos cedo na praia, antes das 10h, e saíamos pouco depois do meio-dia, para almoçar em casa. Depois do almoço, picolé, soneca, bicicleta. Ninguém ia à praia à tarde, por mais quente que estivesse – o que não fazia sentido, mas ninguém parecia notar.

À noite, jogo de carta, melancia, mosquitos – e se o bombril na antena funcionasse, um pouco de novela também. Na sexta, meu pai chegava para passar o fim de semana. Era o pai que, a certa altura do veraneio, decretava o dia que deveria ser lembrado como “o melhor banho da temporada”.

A combinação perfeita entre temperatura da água, tamanho das ondas e ânimo coletivo da nação gerava essa pequena mitologia familiar: o dia de praia perfeito. Eu antecipava esse momento como algumas crianças antecipam a chegada do Papai Noel, a hora em que o pai, depois dos últimos mergulhos antes de voltar para casa, anunciava que, enfim, aquele havia sido o melhor banho de mar do ano. Por que aquele e não outro qualquer? Nunca me ocorreu questionar. O pai sempre acertava.

Meu banho de mar inesquecível, não por acaso, foi o “melhor banho da temporada” daquele ano. Não sei que idade eu teria: nem tão pequena a ponto de ficar apenas no raso, nem tão grande que pudesse ir sozinha no fundo. Depois de brincar na areia e torrar no sol sem protetor, vinha a hora de entrar no mar com o meu pai e a minha mãe. Um de cada lado me dando a mão, íamos até onde a prudência mandasse e eu conseguisse dar pé.

Naquele dia, fomos um pouco mais longe do que o normal, e uma onda que me pareceu gigantesca cobriu a minha cabeça e me fez ficar alguns segundos embaixo d’água, naquela mistura de medo e prazer que a sensação de estar sendo carregado pelo mar às vezes dá.

A onda passou, e a primeira coisa que vi quando voltei à tona foi meu pai e minha mãe me olhando, medindo o tamanho do meu susto, antecipando o choro talvez. Mas eu não chorei. Estava, sim, assustada, mas ao mesmo tempo segura como nunca tinha me sentido antes, com os dois apertando ainda mais forte as minhas mãos.

O mar podia ser imprevisível, cruel, traiçoeiro, mas eu não estava sozinha – e pela primeira vez dava o devido valor a isso.

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