terça-feira, 11 de janeiro de 2011



11 de janeiro de 2011 | N° 16577
MOACYR SCLIAR


Cafezinho frio

O provérbio faz parte da tradição política brasileira: no final do mandato ou da gestão, o cafezinho é servido frio. Uma constatação muito significativa. O cafezinho não é a mais importante das mordomias, mas é a mais constante.

É só olhar a TV: numa comissão da Câmara, está um deputado discursando quando, vindo do nada, aproxima-se um garçom impecavelmente vestido, casaco branco, gravata borboleta, trazendo na bandeja as xícaras de cafezinho fumegante. Com discreta habilidade, serve as pessoas e some sem sequer olhar para a câmera.

O cafezinho está presente em nossa história social e política, seja qual for o cenário. Muitas alianças e acordos foram feitos enquanto as pessoas sorviam a bebida (quente). O cafezinho frio, portanto, é altamente simbólico. Implica um recado: você já era, meu amigo, você é carta fora do baralho, você não tem direito a coisa alguma, caia fora. É tão constante esta regra, que os políticos poderiam avaliar o grau de seu prestígio pela temperatura do cafezinho. Uma espécie de Ibope térmico.

Constatar que o café está frio deve ser, para quem está deixando o cargo, uma fonte adicional de amargura. É o ápice de um conjunto de rituais, que incluem despachar os últimos processos (ou rasgá-los) e esvaziar as gavetas, este também um transe que se torna particularmente doloroso quando, debaixo dos papéis, das embalagens de antiácidos e produtos similares, descobre-se uma barata há muito tempo morta.

Uma barata comum, não o inseto em que o personagem de Kafka se transformou. Uma barata que teve uma morte inglória, despercebida. Como as baratas, o poder morre.

Um desastre. Porque o poder não é apenas afrodisíaco, como disseram Henry Kissinger e Ulysses Guimarães; o poder é, para muitas pessoas, o instrumento de afirmação perante o mundo.

Claro, em muitos casos é uma questão de vaidade, de prepotência mesmo; mas não são poucos aqueles que anseiam pelo poder como a forma de mudar as coisas; um ideal, portanto, e a área de saúde pública é disto um exemplo. Mas em nosso sistema político o poder é volátil.

Dizem que, na Inglaterra, quando cai o governo, saem, junto com o ministro, apenas o diretor-geral, a secretária e o motorista, que, muitas vezes, ouviu demais. De resto, são cargos de carreira exercidos em caráter profissional. Aqui, não. O loteamento é parte de nossa tradição.

Quem sai vai viver uma situação penosa, a síndrome de carência do poder. Não é só o cafezinho; é o fato de que, a partir de um certo dia, a pessoa já não manda mais, não assina papéis, não preside a reuniões, não fala para a mídia; pode ficar o dia inteiro em casa, de bermuda, ou de pijama.

Uma situação com a qual muita gente lida mal, recorrendo inclusive à negação freudiana; o caso de um chefe que, destituído, continuava comparecendo à repartição, sentando à mesa e determinando providências, para constrangimento de seu sucessor. No final, a coisa se resolveu, graças à habilidade de alguém (que certamente não era chefe de nada).

O que pode fazer aquele que se sente carta fora do baralho? Pode ir para casa, preparar seu próprio café (bem quente) e jogar cartas (o jogo da paciência, naturalmente). Ou descobrir um novo caminho na vida. O que não raro resulta em benefício inesperado.

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