sábado, 22 de janeiro de 2011



22 de janeiro de 2011 | N° 16588
NILSON SOUZA


Depois do pesadelo

Meu irmão deu uma volta na barca de Caronte, mas retornou para a margem de cá e para seu próprio corpo, depois de 57 dias na UTI do Hospital Dom João Becker, em Gravataí. Foi tratado com imenso carinho e muita competência pela equipe de médicos e enfermeiros comandada pelo doutor Cristian Benicasa.

Em determinado momento de sua doença, com a voz cassada pela traqueostomia, indispensável para facilitar-lhe a respiração, protagonizou um episódio desconcertante para seus familiares. Íamos visitá-lo na Unidade de Tratamento Intensivo e ele nos expulsava com olhares alucinados e gestos de cabeça, uma vez que estava com o restante do corpo imobilizado pelo longo período de sedação.

Agora que está de volta, ainda com limitações físicas temporárias mas perfeitamente lúcido, perguntei-lhe o que viu do outro lado e por que nos mandava embora quando queríamos apenas manifestar-lhe nosso afeto e nossos cuidados com a sua saúde. Compartilho sua resposta com meus leitores, até para que possamos entender o que se passa na cabeça de uma pessoa ressentida pela longa internação, pela enfermidade e pelo efeito das medicações:

– O outro lado é horrível. É um delírio, em que a gente não sabe o que é sonho, o que é pesadelo e o que é realidade. Eu via aquelas pessoas de branco e tinha certeza de que elas queriam matar vocês. Então, eu me desesperava, queria que vocês fugissem de lá, mas ninguém me entendia e eu não conseguia me comunicar.

Felizmente, o pesadelo terminou. Não fugimos, não fomos embora, não o abandonamos nunca em nossos pensamentos e em nossas orações. Aos poucos, graças principalmente à eficácia do tratamento, ele começou a sair do sonho ruim e recuperou totalmente a consciência.

Agora falta-lhe recuperar os músculos amortecidos pela prolongada imobilização. Sabemos que ainda temos pela frente um longo caminho para a retomada normal da vida, mas estamos todos fortalecidos pela experiência e pelo aprendizado. E eternamente gratos ao hospital e aos profissionais que nos prestaram tão precioso atendimento, custeado inteiramente pelo Sistema Único de Saúde.

Voltando agora aos meus delírios literários, penso que talvez nunca venhamos a saber exatamente por que Caronte o devolveu para o nosso convívio depois da viagem iniciada, mas é provável que o mitológico barqueiro – que conduz as almas para o outro lado da vida em troca de uma moeda – também tenha se sentido rejeitado pelo inquieto passageiro. Ou talvez ele estivesse sem a moeda.

Nenhum comentário: