Contardo
Calligaris
Campos e a homossexualidade
Como
reagir ao anúncio que seu filho é gay? Eu optaria pela indiferença --se possível,
não fingida
Em 1999,
o Conselho Federal de Psicologia decretou que os psicólogos não devem propor
curas para a homossexualidade, visto que a homossexualidade não é um transtorno
mental. O deputado João Campos (PSDB-GO) não concorda; ele acha que o CFP não
pode "restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de
receber orientação profissional".
O
deputado Marco Feliciano (PSC-SP), paradoxal presidente da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara, colocou o projeto de Campos na pauta de ontem (8/5) da dita
comissão.
Na última
hora, a pedido de Henrique Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, a pauta foi
suspensa.
Existe
uma longa e sinistra história das terapias que pretendem "curar" os
homossexuais, ou seja, "reorientar" ou "converter" sua
sexualidade --sinistra, digo, pela violência dos remédios propostos sem
fundamento clínico algum (castração, ablação do clitóris, eletroconvulsoterapia
etc.).
No
Irã de hoje, por exemplo, os homossexuais (que, segundo o governo, não existem)
não são perseguidos se eles aceitarem uma cura que consiste na mudança forçada
de sexo (engraçadamente, a charia local parece proibir a homossexualidade, mas
tolerar o transexualismo).
Vamos
ao último capítulo dessa história, no Ocidente. Em 2001, Robert Spitzer,
psiquiatra respeitado, juntou, num relatório, 200 casos de "conversão"
de indivíduos "altamente motivados" (nenhum dos quais tinha sido
paciente dele). O estudo parecia documentar a possibilidade de reorientar alguém
sexualmente. Durante uma década, discutiu-se sobre a validade dos dados
recolhidos por Spitzer.
Resultado:
no ano passado, Spitzer, professor emérito da Universidade Columbia, publicou
uma carta aberta na qual ele declara que seu estudo não provava que uma
terapia, seja ela qual for, pudesse permitir mudar a orientação sexual de alguém
e que não havia como saber se as declarações dos indivíduos entrevistados para
o estudo eram confiáveis e não autoenganos ou simplesmente mentiras.
Ele
concluía: "Peço desculpas a qualquer pessoa gay que perdeu seu tempo e sua
energia passando por algum tipo de terapia de conversão porque acreditou que eu
tivesse demonstrado que a terapia de conversão funcionaria".
As
terapias de reorientação ou conversão, hoje, são defendidas só por associações
ou indivíduos inspirados por uma condenação moral ou religiosa da
homossexualidade.
Essa
condenação é tão legítima quanto qualquer crença, mas ela não pode oferecer uma
"cura" em nome de uma disciplina clínica. Em outras palavras,
qualquer um, padre, pastor ou charlatão, pode inventar um exorcismo para
desalojar o demônio do corpo dos homossexuais. Mas o médico e o psicólogo não
vendem exorcismos.
Em
suma, sem a intervenção de Henrique Alves, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara
teria desperdiçado seu tempo (e nosso dinheiro). Passemos a outra questão.
Recentemente,
o pai da cantora Katy Perry, pastor evangélico, perturbado porque a filha canta
uma música sobre beijar outra garota, declarou que Katy é filha do diabo.
A
estupidez dos outros é refresco. Mas resta que, para muitos pais, não é fácil
decidir como reagir ao anúncio de que seu filho ou sua filha é gay.
Sabemos
que mandar o filho ou a filha para uma cura de conversão não é uma boa ideia. Em
compensação, alguns pais "modernos", para evitar o ridículo do pai de
Katy Perry, são tentados por uma aceitação festiva, eventualmente fingida. Como
se situar nesse arco, entre "você é doente" e "que maravilha!"?
Eu
optaria por uma espécie de indiferença --se possível, não fingida.
Tanto
a aceitação festiva quanto a maldição empurram o jovem para uma reação em que
ele dará a sua orientação sexual o valor de uma identidade, como se gritasse "olha,
mamãe, sou gay", quer seja para desafiar os pais e o mundo, quer seja para
ganhar seu aplauso.
De
fato, a orientação sexual de um indivíduo não precisa ser um traço relevante de
sua identidade. Em geral, quando ela se estabelece como tal, é de maneira
reativa.
No
caso da homossexualidade, isso é inevitável por causa da resistência social que
a homossexualidade encontra. Se identificar como homossexual é uma maneira de
se impor e lutar. E haverá homossexuais "assumidos" e militantes até que
não haja mais Campos e Felicianos.
Agora,
os heterossexuais assumidos e militantes são tão reativos quanto os
homossexuais. Só que, hoje, os heterossexuais não reagem contra nenhuma
discriminação; talvez eles estejam reagindo contra a única homossexualidade que
os ameaça: a que eles reprimem neles mesmos.
ccalligari@uol.com.br
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