segunda-feira, 6 de maio de 2013



06 de maio de 2013 | N° 17424
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

Tia Célia

Há pessoas que passam pela vida sem deixar rastro. Nada constroem de visível e têm horror à notoriedade. Surpreendem-nos ao morrer, porque já as julgávamos mortas. No entanto, podem ser dotadas de grande espírito, mas que permanece recolhido em sua intimidade mais exclusiva. Esta é a trajetória dos anacoretas, das monjas, daqueles seres que não querem ir além daquilo que lhe foi dado.

A literatura está cheia de personagens que se anulam, sendo exemplos Félicité, de Um Coração Simples, de Flaubert, ou a prima Biela, de Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado. Sucede que, em ambos os casos, essas personagens, na sua anulação voluntária, acabam por revolver as emoções de uma casa inteira. São pessoas que querem anular-se como forma de mostrar que existem e, assim, inconformar-se com o destino.

Uma terceira forma de atitude é vista naquelas pessoas cujo pequeno mundo é suficiente para comportar a humanidade inteira. Seu bem é resultado do bem alheio. As vitórias dos outros são suas vitórias. Quase nada precisam para si mesmas. Vivem do bem que realizam. Em seu rosto, há um sorriso receptivo, acolhedor. Tal como no mundo físico, seu universo está em contínua expansão.

Tia Célia pertencia a esse último grupo. Era uma senhora ágil, alinhada, onipresente, brilhante. A idade só aumentava sua prestativa agitação interior.

Tinha tempo para todos e para si mesma. Telefonava ou mandava recados dos mais inesperados lugares. Lia todos os livros, e os livros dos sobrinhos eram os mais comentados. Um de seus hábitos mais expressivos e caracterizadores era, tal como fazem os russos, o de tratar a todos no diminutivo, como resultado de anos de prática da generosidade. Isso a obrigava a operações linguísticas complicadas, mas acabava por criar neologismos perfeitamente exatos e fascinantes.

Os eventos sociais e culturais, ia a todos. Se agora, nos mais de 90 anos, a doença castigava, sempre alguém telefonava ou ia em seu nome.

Todos a julgavam eterna. Ela precisava ser eterna, para que seguíssemos a acreditar no ser humano. Sua partida nos chocou.

Logo nos demos conta, porém, que ela segue vivendo em suas ações e no sorriso dos outros quando se lembram dela.

Isso basta, isso justifica uma vida.

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