segunda-feira, 5 de novembro de 2012



05 de novembro de 2012 | N° 17244
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

Câncer

Christopher Hitchens parecia eterno, com sua exuberância de polemista, com suas causas perdidas, com suas proposições alucinadas e, enfim, com seu inexcedível e ácido brilho intelectual. O humor, Hitchens o gastava na convivência familiar e com seus amigos, em jantares que duravam, segundo Carol Blue, oito horas seguidas, pontilhados por brindes intermináveis.

Notabilizou-se pelo best-seller Deus Não É Grande e por suas críticas a Madre Teresa de Calcutá, embora seu talento fosse muito além disso.

A Vanity Fair constituía sua trincheira (no Brasil, a revista Época), mas Hitchens era, afirmam seus interlocutores, um causeur infindável e um orador que mesmerizava seus ouvintes. Era daquelas pessoas cuja exuberância mental e física levava a pensá-lo eterno.

Mas, como diz o redundante título de Simone de Beauvoir, todos os homens são mortais. E a morte abateu-se sobre Christopher Hitchens aos 62 anos. Câncer de esôfago e suas metástases. Muitas pessoas respeitáveis atribuem sua moléstia aos exageros da bebida e do cigarro. Sem nenhuma autoindulgência, Hitchens concordaria.

Christopher Hitchens escreveu sobre o desenvolvimento do câncer que o vitimava, de modo que sua morte era um acontecimento público, de cuja iminência já sabiam seus leitores. Tal como acontece no Ivan Ilitch. Esses textos “do câncer” foram reunidos post mortem na obra Mortality, no Brasil banalizada para Últimas Palavras, saído agora pela Editora Globo numa tradução de Alexandre Martins.

Não se esperem queixas lacrimosas com laivos de autoajuda. O livro é um depoimento direto, sem ilusões nem promessas, mas que leva a uma densa meditação sobre a existência dos seres vivos. Ali está narrado o momento em ele soube que tinha câncer e tudo o que veio depois, nos 19 meses seguintes: os exames, as esperas, as diferentes terapias, as frustrações e, especialmente, a dor, companheira diuturna e inútil dos doentes.

Conhecemos a clássica frase dos necrológios: “Lutou contra um câncer...”; nada disso, rebelou-se Hitchens: o câncer é que lutava contra ele, e ele procurava defender-se como podia. Essa inversão de perspectiva é o tom de todo o livro.

Curioso: ele, antiteísta devoto, escreve quase ao final: “Se eu me converter é porque é melhor que morra um crente do que um ateu”. Uma reserva de esperança? Mais uma ironia?

Últimas Palavras – um livro para todos: saudáveis, enfermos, temerosos e esperançosos. Para todos nós, afinal, que já nos sabemos mortais.

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