sábado, 3 de novembro de 2012



04 de novembro de 2012 | N° 17243O CÓDIGO
DAVID | DAVID COIMBRA

MOSCAS ELETROCUTADAS

Comprei uma raquete de matar mosca eletrocutada. Adoro matar mosca com aquele troço. A mosca pousa no vidro da janela e eu já empunho a raquete, empurro a alavanquinha que aciona a eletricidade e me aproximo rosnando:

– Você vai morrer! Vai morreeeeerrrr! Meu filho sai correndo.

Então encosto a raquete na mosca e, tzzzz!, ela frita e sai faísca e ela bate as asas nas vascas da morte e expira, liberando um cheiro de queimado. Dou uma risada maligna:

– Hô! Hô! Hô! Muito divertido.

Mas esta semana me questionei: não estarei cometendo algum crime ambiental? Os ambientalistas, ecologistas, preservacionistas et caterva dizem que cada animal pequeno, médio ou grande tem a sua função na natureza, e que por isso não devemos mexer com eles. Qual será a função da mosca? E da barata?

Confesso que também não gosto muito de baratas e não sinto dramas de consciência ao esmagá-las numa chinelada vigorosa. Talvez os ecologistas não deem importância especial aos insetos, afinal. Darão às ratazanas? Não ficaria chateado se todas as ratazanas do mundo sumissem, admito. Qual será a função delas?

2 Namorando um piteco

Isso de cada espécie ter a sua função. Milhares de espécies já foram extintas do planeta, e não fazem falta. Nem falo em dinossauros e pterodátilos, que eram grandes demais. Falo em pássaros dodôs ingênuos, em mamutes de tamanho razoável e até em... seres humanos. Sim! Havia dezenas de espécies humanas na Terra e só nós, Homo sapiens, restamos.

Se os preservacionistas atuassem há três ou quatro milhões de anos, hoje partilharíamos espaços nos estacionamentos de shoppings com tipos como o australopiteco, que tinha um metro de altura e a inteligência de um cão labrador. Imagine se a sua filha começasse a namorar um australopiteco. Você sabe como são os adolescentes quando querem confrontar os pais e manifestar sua independência...

Na verdade, talvez não tenha sido ruim que os australopitecos tenham sido extintos junto com os mamutes e os pássaros dodôs. Mas, antes que os ecologistas me ataquem e insultem, como sói acontecer, quero deixar patente que sou contra a extinção dos animais que atualmente dividem o planeta conosco, como os nobres tigres e leões, as baleias que o Rei tanto ama, o jacaré de papo amarelo e, sobretudo, o bacalhau, que me disseram estar acabando, o que muito me inquietou, não quero viver num mundo sem bacalhau.

Enfim, amo os animaizinhos de todos os portes, exceto os já referidos ratos, moscas e baratas, e as bactérias e vírus, e os protozoários em geral, e a maioria dos vermes, e, claro, os pitbulls.

3 O despejo do urubu

Por que escrevo tudo isso?

Para sublinhar que não sou contra o urubu.

Ocorre que, esta semana, escrevi sobre o caso de um urubu que construiu seu ninho na sacada de um apartamento da Bela Vista. O proprietário do apartamento chamou a Secretaria do Meio Ambiente, que o notificou: o ninho não pode ser removido. Se for, será cometido crime ambiental. O homem terá de conviver com os urubus até que os filhotes cresçam e decidam se mudar.

Considerei um excesso de zelo animal da Secretaria. Afinal, uma sacada de apartamento é parte de um ninho humano, não de um ninho de urubu. O invasor ali é o urubu, não o homem. E, se o ninho for retirado, o urubu provavelmente não desistirá de constituir família, embora a mamãe urubu talvez fique chateada. Quer dizer: a remoção do ninho não acarretará risco à sobrevivência da espécie dos urubus. Eles continuarão por aí, comendo suas carniças e batendo suas asas.

Considerei meus argumentos bastante ponderados, mas houve quem não pensasse assim. Passei a semana ouvindo falar de urubu. A favor do urubu.

Há muita gente que defende os animais e a natureza, hoje em dia. São grupos organizados e ativos como colmeias. Quando se manifestam a respeito de algo que você falou ou escreveu tornam-se ferozes como tigresas na vigilância das crias. O curioso é que eles são ótimos com bichos e plantas, mas não são tão hábeis com as pessoas. Por que tanta intolerância com sua própria espécie? Há algo de profundo aí.

4 O corvo

Continuo a favor do despejo do urubu, mas volto a frisar: não é nada pessoal, embora não o considere um bicho bonito como a arara e nem mesmo sombriamente charmoso como o corvo. Até porque o corvo mereceu um poema imortal de Poe:

“E então abri a janela, e eis que penetrou por ela na câmara um nobre corvo, desses de eras ancestrais.

Entrou sem deferimento, sem fazer um cumprimento, dama ou lorde pachorrento, e pousou sobre os umbrais.

Pousou num busto de Palas, pousou lá, e nada mais.”

O urubu, que eu saiba, só foi alvo de homenagem ao dar título a um disco do Tom Jobim e ao simbolizar a torcida do Flamengo.

De toda maneira, repito: espero que as famílias de urubus vivam em paz e se reproduzam alegremente, desde que fiquem longe de mim. Jamais investiria contra um urubu, ainda que fosse inventada uma raquete gigante para eletrocutá-los. Quanto às moscas, desculpem-me seus eventuais defensores, continuarei a fritá-las sem dó. A primeira que aterrissar na minha janela, já sabe:

– Você vai morrer! Vai morreeeeerrr!

Às vezes eu também posso ser mau.

A orquídea e o serial killer

Todo mundo conhece, ou devia conhecer, a pena ferina, sarcástica, iconoclasta e corrosiva do Juremir Machado da Silva. Ou será que, em tempos de pós-modernidade, deveria dizer o teclado ferino, sarcástico, iconoclasta e corrosivo? Bem. O fato é que é assim que o Juremir escreve, embora pessoalmente ele seja uma moça de gentileza. Agora, nesta Feira, ele está lançando um livro de crônicas pela L&PM, A orquídea e o serial killer, que é tudo isso: ferino, sarcástico, iconoclasta e corrosivo.

São 100 crônicas que precisam ser lidas e relidas. Mas, na abertura do volume, o Juremir mostra uma faceta pouco conhecida do seu trabalho: ele mostra que é poeta. Vou reproduzir um naco do poema de apresentação do livro, que também é uma espécie de profissão de fé. O resto? Leia o livro.

Não serei o poeta de um mundo novo.

Tampouco serei o cantor do meu povo.

Não falarei jamais algo sublime.

Praticarei sempre o mesmo crime...

Farei poesia sem poesia

Romance sem personagem,

Teatro sem maquiagem.

Nunca voltarei à Antiguidade,

Nem mesmo à velha modernidade.

Ano depois de ano,

Rasgarei a fantasia,

Em nome do cotidiano.

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