sábado, 3 de novembro de 2012



04 de novembro de 2012 | N° 17243
PAULO SANT’ANA

Métodos medievais

Meu pai se chamava Cyrillo Sant’Ana. Era filho de Israel Sant’Ana, por óbvio meu avô.

Meu pai me contava, quando eu era criança, que meu avô tinha cinco filhos, meu pai e quatro irmãos e irmãs.

E que meu avô tinha dependurado na parede da sala da casa deles um relho de couro trançado, que naquele tempo se chamava rabo de tatu.

E que, quando queria surrar um de seus cinco filhos, meu avô o chamava na cozinha, no pátio ou em qualquer parte da casa e pedia ao filho que ia ser surrado que fosse buscar o relho que estava dependurado na parede da sala.

Estou contando que meu avô ordenava ao filho que ia ser surrado dentro de um minuto que fosse buscar o relho que iria usar na surra decidida.

Já pensaram na humilhação e dor moral que continha essa ordem esquisita e cruel do meu avô?

A criança ou adolescente atravessar toda a casa em busca do rebenque que o torturaria dali a instantes!

E dizia meu pai que a surra era sempre demorada e dolorida.

Não posso classificar a tara de meu avô ao mandar seu filho buscar o próprio relho que lhe infligiria a grande surra.

Mas era com castigos desse tipo que muitos pais educavam seus filhos no início do século passado.

Cogito da razão por que meu pai me contava sobre esse sofrimento seu e de seus irmãos.

Calculo que meu pai me contava para justificar as surras tremendas que me dava, como que a me dizer assim: “E tu tens a sorte de que não te mando buscar o relho na sala, como teu avô fazia comigo”.

Conheço todas as nuanças da opinião pública e não desprezo a hipótese de que muita gente ainda hoje aprove esses métodos medievais de educação de crianças e jovens.

A forma despótica a que eram submetidos os filhos antigamente contraria frontalmente os princípios modernos de pedagogia. Mas não me escapa que hoje em dia muita gente aprova aquela maneira terrível com que os filhos eram educados, a pretexto de que crianças e adolescentes criados assim tão drasticamente sempre se tornavam adultos de bem, aplicados, estudiosos e trabalhadores.

O que eu penso desse exemplo trazido a mim pelo meu pai é que se tratava de uma safadeza de meu avô.

Uma inominável judiaria contra meu pai e meus tios. Uma forma anárquica e cruenta de educar os filhos. Para mim, uma canalhice sem desculpa. Uma malvadeza. Um lixo cultural que deveria ter sido jogado ao monturo dos primórdios da chamada civilização.

Muito, e com desprezo, recordo de meu pai pelas dores que me causavam os severíssimos castigos corporais a que me submetia.

E, por isso também, pouco me recordo de meu pai em raras atitudes de carinho que demonstrava comigo, das quais uma só não me sai da lembrança: quando, uma só vez, em cima de sua cama, me envolvia entre suas pernas afetuosamente e pedia que eu tentasse me livrar da “tesoura” que aplicava docemente em meu tórax.

Nunca vi nem ouvi dizer que espancar filho ajuda em alguma coisa.

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