sábado, 4 de janeiro de 2014


05 de janeiro de 2014 | N° 17664 VERISSIMO
As aventuras da família Brasil

Em Úbeda

John Barth é um escritor americano com um gosto pela literatura experimental, autoreflexiva e metafórica, que, acho eu, pode ser chamada de pós-moderna embora quase tudo, hoje, possa ser chamado de pós-moderno. Entre os seus ídolos literários estão Jorge Luiz Borges. Italo Calvino, Vladimir Nabokov, Samuel Becket e, surpreendentemente, Machado de Assis. Escrevi é e fiquei na duvida. Seria era? Consultei o Google para saber se Barth está vivo. Ou o Google está desatualizado ou ele, com 83 anos, ainda respira.

Eu tinha lido alguns romances dele e há pouco encontrei uma coleção dos seus ensaios e palestras, recém publicada. Numa das palestras, Barth lembra a história do cerco das tropas do rei Alfonso VI pelos mouros aos pés da Sierra Morena, Andaluzia, no século 11, e a chegada tardia do legendário El Cid a frente de reforços, para salvá-las. Irritado, o rei teria perguntado a El Cid a razão da sua demora, ao que o Campeador teria respondido: “Andava pelas colinas de Úbeda”. Desde então a frase incorporou-se ao idioma espanhol, e diz-se de quem se desvia do seu objetivo, esquece seu propósito ou se distrai, que “se marcha por los cerros de Úbeda”. Barth inclui nesta definição a digressão de palestrantes que abandonam o assunto da sua palestra como quem divaga pelas colinas de Úbeda.

Na mesma palestra Barth lembra a historia de Calipso, a ninfa do mar que atrasa a volta de Ulisses para casa e o detém por sete anos, na Odisseia de Homero. O nome “Calipso” vem da mesma raiz grega de “kalupsein”, que quer dizer “encobrir” (e também é da raiz de “apocalipse”, o inverso de encobrir, “revelação”, como sabe qualquer leitor da Bíblia). Calipso encobre, com seu encanto, o objetivo de Ulisses, que é voltar das ruinas de Troia para os braços de Penelope. Segundo Barth, ela pode ser chamada de Deusa da Digressão. Nos seus braços o herói da Odisseia encontra a sua Úbeda, e nela fica por sete anos.

Todos nós conhecemos “los cerros de Úbeda”, por onde andamos em devaneios, ou quando é absolutamente necessário mudar de assunto. Em Úbeda adiamos tudo o que precisa ser feito, não pensamos no que nos atormentaria e desfrutamos do doce prazer da indefinição: em Úbeda só se passeia, nada se decide. Ou, como nos casos de El Cid e de Ulisses, Úbeda é onde se perde tempo. Há quem nasça e passe toda a vida na sua Úbeda particular, longe da realidade, sem se dar conta. E há os que escolhem ficar em Úbeda em vez de encarar as durezas da vida.


El Cid, apesar do bucólico desvio que atrasou sua chegada, acabou chegando, e pondo os mouros a correr. Ulisses, no fim de sete anos nos braços de Calipso, finalmente decidiu que era hora de ir para casa. Tanto El Cid quanto Ulisses teriam chegado vigorados ao seu destino depois da sua passagem por Úbeda, El Cid no campo de batalha para salvar o rei, Ulisses na cama da paciente Penelope. O que serviria de exemplo para cronistas que passam longas temporadas em Úbeda, dedicando-se a frivolidades inconsequentes, para vez que outra acabar com a digressão, dar um mergulho na realidade e escrever para valer.

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