05 de janeiro de 2014 | N° 17664 VERISSIMO
As aventuras da família Brasil
Em
Úbeda
John Barth é um escritor americano com um gosto pela
literatura experimental, autoreflexiva e metafórica, que, acho eu, pode ser
chamada de pós-moderna embora quase tudo, hoje, possa ser chamado de
pós-moderno. Entre os seus ídolos literários estão Jorge Luiz Borges. Italo
Calvino, Vladimir Nabokov, Samuel Becket e, surpreendentemente, Machado de
Assis. Escrevi é e fiquei na duvida. Seria era? Consultei o Google para saber
se Barth está vivo. Ou o Google está desatualizado ou ele, com 83 anos, ainda
respira.
Eu tinha lido alguns romances dele e há pouco encontrei uma
coleção dos seus ensaios e palestras, recém publicada. Numa das palestras,
Barth lembra a história do cerco das tropas do rei Alfonso VI pelos mouros aos
pés da Sierra Morena, Andaluzia, no século 11, e a chegada tardia do legendário
El Cid a frente de reforços, para salvá-las. Irritado, o rei teria perguntado a
El Cid a razão da sua demora, ao que o Campeador teria respondido: “Andava
pelas colinas de Úbeda”. Desde então a frase incorporou-se ao idioma espanhol,
e diz-se de quem se desvia do seu objetivo, esquece seu propósito ou se
distrai, que “se marcha por los cerros de Úbeda”. Barth inclui nesta definição
a digressão de palestrantes que abandonam o assunto da sua palestra como quem
divaga pelas colinas de Úbeda.
Na mesma palestra Barth lembra a historia de Calipso, a
ninfa do mar que atrasa a volta de Ulisses para casa e o detém por sete anos,
na Odisseia de Homero. O nome “Calipso” vem da mesma raiz grega de “kalupsein”,
que quer dizer “encobrir” (e também é da raiz de “apocalipse”, o inverso de
encobrir, “revelação”, como sabe qualquer leitor da Bíblia). Calipso encobre,
com seu encanto, o objetivo de Ulisses, que é voltar das ruinas de Troia para
os braços de Penelope. Segundo Barth, ela pode ser chamada de Deusa da
Digressão. Nos seus braços o herói da Odisseia encontra a sua Úbeda, e nela
fica por sete anos.
Todos nós conhecemos “los cerros de Úbeda”, por onde andamos
em devaneios, ou quando é absolutamente necessário mudar de assunto. Em Úbeda
adiamos tudo o que precisa ser feito, não pensamos no que nos atormentaria e
desfrutamos do doce prazer da indefinição: em Úbeda só se passeia, nada se
decide. Ou, como nos casos de El Cid e de Ulisses, Úbeda é onde se perde tempo.
Há quem nasça e passe toda a vida na sua Úbeda particular, longe da realidade,
sem se dar conta. E há os que escolhem ficar em Úbeda em vez de encarar as
durezas da vida.
El Cid, apesar do bucólico desvio que atrasou sua chegada,
acabou chegando, e pondo os mouros a correr. Ulisses, no fim de sete anos nos
braços de Calipso, finalmente decidiu que era hora de ir para casa. Tanto El
Cid quanto Ulisses teriam chegado vigorados ao seu destino depois da sua
passagem por Úbeda, El Cid no campo de batalha para salvar o rei, Ulisses na
cama da paciente Penelope. O que serviria de exemplo para cronistas que passam
longas temporadas em Úbeda, dedicando-se a frivolidades inconsequentes, para
vez que outra acabar com a digressão, dar um mergulho na realidade e escrever
para valer.
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