19 de janeiro de 2014 |
N° 17678
O CÓDIGO DAVID | DAVID
COIMBRA
O pé
Vi que ele olhava para os pés
dela. Para um pé, na verdade.
O direito.
Olhei-o também. Bom pé. Pé magro,
de aparência macia, com dedos em harmoniosa escadinha subindo do mingo frágil
ao dedão encorpado mas jamais rombudo.
Isso de pé. Não sou dos fanáticos
por pé. Aprecio belos pés, claro, mas os desgraciosos não são eliminatórios
para mim. Dizem que a Naomi Campbell tem pés horríveis, e isso não me impede de
admirar o trabalho dela. E a Xuxa, há quem garanta que ela só usa botas por
vergonha dos pés. Será? Tenho pensado nisso, volta e meia.
De qualquer forma, eu e ele
olhávamos agora para o pé direito dela. Estávamos à espera de mesas num
restaurantezinho da orla catarinense, eu num canto, eles noutro. Eles formavam
um casal de namorados, supus. Ele mais velho, ela na glória de seus vinte e
poucos anos. Ela estava numa cadeira mais alta, ele ao lado, num banquinho
humilde. Ela havia cruzado as pernas, a direita por cima da esquerda, e por
isso seu pé direito balançava com indolência no ar.
Ele, não o namorado, o pé, ele
estava calçado com uma sandália baixa, amarrada ao tornozelo. Subia e descia,
subia e descia devagar, até que ele, o namorado, não pé, até que ele o colheu.
Com delicadeza, o namorado
interrompeu o voo suave do pé direito da namorada. Tomou-o com as duas mãos,
pela sola da sandália e pela base da canela. A namorada, do alto, olhou sem
muito interesse. O namorado, então, levou aquele pé aos lábios, como se fosse
um cálice de vinho consagrado, e o beijou. Beijou-o profundamente, com os olhos
fechados de devoção, aspirando-lhe o perfume, e depois o depositou de volta ao
ponto de repouso.
O namorado ficou ainda fitando o
pé adorado, satisfeito, e ela, a namorada, encheu os pulmões de ar e sorriu,
iluminada, sentindo-se uma deusa, sentindo-se uma rainha, e eu, do meu canto,
pensei que, das coisas que um homem pode fazer na vida, raras são tão belas,
tão poderosas, tão grandiosas do que fazer uma mulher sentir-se uma deusa, uma
rainha, porque, naquele momento, ela estará se sentindo, inteira, o que de
melhor ela é: uma mulher.
O papagaio
Dia desses, me aborrecia numa
sala de espera e, na TV pendurada na parede a minha frente, passava o programa
matinal da Globo. Vi a apresentadora, a Ana Maria Braga, conversando com um
papagaio de plástico. Era uma conversa fluente. O papagaio fazia ponderações, a
humana contra-argumentava, tudo muito tranquilo, muito racional. Admirei
profundamente a Ana Maria Braga naquele instante.
Eu não conseguiria ser tão
natural ao interagir com um papagaio de plástico. No Pretinho Básico, quando
falo com algum dos personagens, fico meio sem jeito. Mas a Ana Maria Braga,
não. A Ana Maria Braga levava o papagaio a sério. Percebi que ela se importava
com as opiniões do papagaio e que ele, de alguma forma, era essencial para o
desenvolvimento do programa.
Minha admiração, então, elevou-se
da competência profissional da Ana Maria Braga para a criatividade da raça
humana em geral. Imaginei os homens e mulheres que bolaram esse programa
reunidos, anos atrás, e um deles propondo:
– Que tal nós colocarmos no ar
uma mulher conversando com um papagaio de plástico de manhã cedo, todos os
dias?
E os outros socariam as próprias
mãos, exclamando:
– Boa ideia!
E o programa iria ao ar e faria o
grande sucesso que faz.
Não é genial? Que percepção do
gosto popular! Que sensibilidade!
Um papagaio de plástico. Jamais
pensaria nisso. Lembro do ratinho Topo Giggio, que contracenava com o Agildo
Ribeiro e cantava meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá. Não era como o
papagaio da Ana Maria. Não, aquele era um programa para crianças. E o papagaio
da Ana Maria não é um personagem com aventuras próprias, como o Topo Giggio.
Mesmo assim, deu certo. O Big Brother dá certo aqui como em nenhum outro lugar,
os Sarneys dão certo aqui há 50 anos, por aqui os funkeiros ficam ricos, por
que não um papagaio de plástico conversando com uma senhora? O Brasil, de fato,
é um país generoso.
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