14 de janeiro de 2014 |
N° 17673
FABRÍCIO CARPINEJAR
Não há como imaginar
Um amigo virou alcoólatra.
Ele era alegre, falante, dirigia
negócio promissor, morava em seu apartamento no Moinhos de Vento, viajava para
Buenos Aires nas férias, adorava dançar nos sábados.
A última vez em que eu o vi foi
em janeiro de 2012, num restaurante italiano da Cidade Baixa. Reencontrei-o há
pouco, dentro de um carro, encolhido no banco de trás, com o olhar parado e
morno, sendo conduzido para a terceira clínica de desintoxicação. Estranhei os
cabelos loiros queimados nas pontas, ele que nunca descuidou de sua imagem.
Em um ano tomado pelo álcool,
transformou-se num fiapo de gente: perdeu o endereço comercial, gastou o imóvel
para quitar dívidas do vício, não tem capacidade de decidir nem o que vai
comer.
Assim como retiramos o rótulo da
garrafa de cerveja com a umidade, sua história desapareceu. A bebida sugou sua
identidade, seu temperamento, sua memória, até torná-lo anônimo.
Não fiquei triste que ele não me
reconheceu, fiquei triste que ele não se reconhecia mais. Sequelado
excessivamente para poder reconstruir sua trajetória.
Se o estado deplorável do amigo
me assustou, o que deve latejar nas veias de sua família: em seus irmãos, em
seu pai, em sua mãe?
O que é ter um filho que se
anulou, que morreu para o mundo, a um passo de se apagar a qualquer momento?
Não há como imaginar o sofrimento
dos pais. Porque imaginar ainda não é passar a semana inteira levando o filho
de um lado para o outro, de um hospital a outro, na baldeação ininterrupta de
médicos.
Não há como. Porque eu disponho
de tempo para imaginar, eles somente têm tempo para cuidar.
O pai, que jurava que a educação
do seu filho estava resolvida (formado e com emprego), enxerga-se impelido a
reiniciar a paternidade e caminhar com uma criança grande amarrada aos ombros.
Não há como imaginar o que é
receber uma ligação de madrugada para retirar seu filho mergulhado no meio-fio
de alguma ruela, onde apanhou ou caiu misteriosamente, lavar os ferimentos e
atravessar a noite em claro, rezando para que Deus ofereça uma segunda chance e
não o leve embora.
Não há como imaginar o próprio
filho querendo matá-lo, possuído de raiva; querendo roubá-lo, possuído de
ansiedade; querendo escapar porta afora, possuído de pânico.
Ele melhora um pouquinho, e logo
piora de novo. Ele se regenera num mês, e afunda nos seguintes. Ele se acalma
um instante, para explodir e bater em quem encontrar pela frente.
Não existe mais o luxo de um dia
bom, mas somente dia menos ruim. As expectativas são renovadas para a certeza
da frustração.
A família de meu amigo tem todos
os motivos para desmoronar, porém permanece de pé. O casal de pais não se
separou, os irmãos não se distanciaram, ninguém usa uma desculpa para não
trabalhar, um pretexto para não seguir com a rotina. Choram no meio das
tarefas, riem de puro alívio, dedicam-se a uma eterna fisioterapia emocional em
torno de uma pessoa (as palavras reaprendendo a andar, os lábios reaprendendo a
beijar, os braços reaprendendo a abraçar).
Apesar da convicção de que ele é
irrecuperável, nenhum dos parentes desiste. Só conhece o amor verdadeiro quem
teve uma esperança falsa.
Eles continuam, como continuam os
que realmente acreditam em milagres.
Amar com a vida a favor já é
complicado, não há como imaginar amar com a vida contra.
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