terça-feira, 21 de janeiro de 2014


21 de janeiro de 2014 | N° 17680
DAVID COIMBRA

A dança da sobrevivência

Do que um homem precisa, quando acorda de manhã?

Do que um homem re-al-men-te precisa?

É óbvio: precisa do beijo da mulher amada e de scrambleds, necessariamente nessa ordem.

Mas, por infortúnio cultural e geográfico, brasileiros não estão acostumados com scrambleds matinais, embora beijos de mulheres amadas sejam plausíveis. Scrambleds, você sabe: ovos mexidos.

Existem preconceitos proteicos no Brasil, e é por isso que os scrambleds foram banidos das mesas de café da manhã de Porto Alegre a Manaus, com exceção das de hotéis e pousadas, que anseiam por seduzir estrangeiros. Então, os grandes scrambleds da minha vida ocorreram em viagens e é por isso ora trato deles: porque estou indo passar uma temporada no Grande Irmão do Norte, a terra abençoada dos scrambleds, do bacon, do hot-dog e da Megan Fox.

Mas terá sido um norte-americano o iluminado inventor dos scrambleds? Ou tal iguaria foi concebida na pátria-mãe, a Velha Álbion? O omelete, sei que sim. Séculos atrás, respirava na Inglaterra um rapaz chamado Oswald Mellet. Amante da boa mesa, tanto gourmet quanto gourmand, seu sonho era abrir um restaurante, mas os pais dele queriam que fosse médico. Obediente, o jovem Oswald cursou medicina, formou-se com honras e, por fim, apresentou o diploma aos pais orgulhosos. Só que não montou o consultório, e sim o restaurante. E, numa ironia tipicamente britânica, pregou na parede uma placa com os dizeres: “Dr. O. Mellet”. Como sua casa era especializada em pratos com ovos, a receita principal passou a ser designada pelos clientes como... omellet. Donde, omelete.

Será que o doutor Mellet servia scrambleds em seu estabelecimento? Tenho de pesquisar.

Em todo caso, já provei excelsos scrambleds na terra da rainha. Uma vez, em Edimburgo, na Escócia, a dona da pensão em que me hospedava perguntou, ao café da manhã:

– Quantos ovos você vai querer?

E eu:

– Um, obrigado.

Ela:

– Quantos ovos você vai querer?

Eu, desconfiado do meu inglês, escandindo as sílabas:

– Just one, thank you.

– Quantos ovos você vai querer?

Eu, mostrando o indicador espetado no ar:

– Um! Um! Um!

Ela, balançando a cabeça:

– Um homem do seu tamanho não pode comer apenas um ovo de manhã.

Eu, humilhado:

– Dois ovos, por favor.

Devia ter pedido scrambleds.

Mas o melhor scrambled da minha vida não o comi em hotéis ou pousadas, não o comi nem em minha própria casa ou na da mãe ou na da avó, sublime cozinheira. O melhor scrambled da minha vida foi um scrambled improvável.

Estava em missão jornalística no alto dos Andes colombianos, 4 mil metros acima do nível do mar, num povoado em que restavam tão-somente 12 famílias – os outros moradores haviam fugido da guerra das Farc. Passava da meia-noite, nosso carro havia quebrado, nós não tínhamos como continuar a viagem para cima nem para baixo, não existia transporte no lugar, nem posto de abastecimento, nem polícia, nem prefeitura, nem nada, e ninguém abria as portas para nós, em obediência ao toque de recolher da guerrilha. Estávamos, eu, o motorista colombiano e o fotógrafo José Doval, cansados, famintos e com frio. Então, batemos com insistência à porta de um pequeno armazém, e o dono atendeu. Explicamos nossa situação e ele aceitou nos ajudar.

Conseguiu-nos cobertores, ligou um grande rádio de ondas curtas, serviu-nos uma cachaça branca colombiana e foi para a cozinha. Voltou de lá com latas de sardinha abertas e scrambleds numa panela. Comemos feito leões devorando gnus. Comemos feito feras. E depois, ouvindo a música alegre que se evolava do rádio, dançamos na madrugada andina, os três em volta à mesa como índios, enrolados nos cobertores, para divertimento do dono do armazém. Dançávamos, veja só. Dançávamos como se estivéssemos na festa mais louca, alegres pelo acolhimento, por aquela saborosa refeição, por estarmos vivos.

Foram os scrambleds da minha vida. Scrambleds de sobrevivência.


É assim. As coisas boas da vida ocorrem nos momentos e nos lugares mais imprevisíveis. Era para ser só um chopinho, e foi um encontro encantador. Minha intenção era ficar 15 minutos, e agora não saio mais daqui. Era um autor desconhecido, mas para mim virou um clássico. E até o Gauchão pode vir a ser uma grande alegria, por que não? Você não sabe onde vai encontrar os scrambleds da sua vida.

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