11 de janeiro de 2014 |
N° 17670
CLÁUDIA LAITANO
Terra em transe
Em meados dos anos 60, Glauber
Rocha filmou a posse de um jovem político que prometia tirar seu Estado do
atraso e da miséria. O curta Maranhão 66, disponível no YouTube, contrapõe as
promessas de renovação do governador recém-eleito, José Sarney, a imagens reais
de pobreza, doença e abandono – chocantes até mesmo para os padrões brasileiros
de indigência.
À luz do que sabemos hoje sobre a
família Sarney e seu comovente empenho para diminuir a miséria do Maranhão nos
últimos 50 anos, é tentador encarar o filme como uma brilhante (e premonitória)
crítica social, capaz de denunciar não apenas as contradições do jovem político
em ascensão, mas a ingenuidade da massa de manobra que saudava em êxtase o novo
governador como se genuinamente acreditasse que lábia, bigodes e gomalina
fossem a solução definitiva para todos os problemas da nação.
O documentário é uma peça de
propaganda no mínimo ambígua: foi encomendado pelo próprio Sarney, que já não
era bobo, ao amigo Glauber, que já não era certo. Nele vemos um orador cheio de
energia parnasiana lendo um discurso que qualquer adversário assinaria embaixo:
“O Maranhão não quer a desonestidade, a corrupção. O Maranhão não quer a
violência como instrumento da política. O Maranhão não quer a miséria, a fome,
o analfabetismo”. Seria Sarney o salvador da pátria ou a nova cara do
continuísmo? É provável que os maranhenses da época não achassem tão evidente o
que hoje nos parece óbvio.
São muitas as lições que podemos
extrair do curta Maranhão 66. Uma delas é que nenhum artista é dono da
posteridade de sua obra. Um filme feito para defender uma ideia pode vir a
assumir o sentido exatamente oposto, sem que sua qualidade estética seja
questionada – um fenômeno parecido aconteceu com a diretora alemã Leni
Riefenstahl, a cineasta de Hitler, que filmou a Olimpíada de 1936 de forma a
exaltar a superioridade ariana e acabou se tornando um símbolo da estética
racista.
Outra é quase uma obviedade:
somos muito mais impactados por imagens do que por palavras – falsas ou
verdadeiras. O arrebatador discurso do jovem e vigoroso Sarney fala de um
Maranhão miserável, doente e corrupto, mas é a imagem de um único homem,
morrendo de fome e de abandono, que nos dá a real dimensão da tragédia que ele
descreve.
Algo parecido aconteceu esta
semana com a divulgação do vídeo com as atrocidades cometidas no presídio de
Pedrinhas. Imagens de virar o estômago, que muitos não tiveram coragem para
assistir, acabaram desencadeando a reação nacional e internacional que todas as
denúncias anteriores não foram capazes de provocar. Chocante, mas necessário.
Por permitir que o clã Sarney se
perpetue no poder, por dar as costas para o que acontece no coração mais escuro
da miséria nacional, por repetir sempre e de novo os mesmos erros, o Brasil
talvez precisasse mesmo enfrentar o mal-estar, a vergonha e a culpa de ver
corpos sem cabeça amontoando-se no chão.
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