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domingo, 24 de agosto de 2008
FERREIRA GULLAR
Auto-retrato falado
Quase nenhum fidalgo quis vir para a selva, cheia de mosquitos, serpentes e índios antropófagos
DE UNS tempos para cá, não sei por que, comecei a me perguntar o que nos caracteriza, quem somos nós, brasileiros.
E para ver se achava uma resposta fui relembrar como tudo começou. Verifiquei que custou a começar talvez porque nossos descobridores, os portugueses, não contavam com isso: de repente, caiu-lhes no colo uma terra selvagem quando o que buscavam era um caminho mais fácil para as Índias.
Tomaram posse da terra, mas a deixaram de lado, até descobrirem que havia aqui uma preciosa madeira de cor vermelha, que os piratas franceses levavam para vender na Europa, sem nada pagar ao rei português. Isso deu origem a guerras sucessivas, que se estenderam por mais de meio século.
As duas grandes nações indígenas tomaram partido: os tupinambás aliaram-se aos franceses, e os tupiniquins, aos portugueses, até que em 1559, Villegaignon, depois de tentar implantar aqui a França Antártica, se deu por vencido e foi embora.
Mas em nenhum momento Portugal deu a entender que via o Brasil como uma extensão de nação portuguesa. Nada disso: pensava apenas em extrair da nova terra o que lhe desse lucro, e só.
Trinta e dois anos após a descoberta, o rei português decidiu dividir a costa brasileira em capitanias para impedir que os invasores continuassem a saquear sua propriedade ou até mesmo ocupá-la. Mas quase nenhum fidalgo quis vir para a selva, cheia de mosquitos, serpentes e índios antropófagos.
Vieram alguns membros da pequena nobreza, afora os condenados à morte, os degredados e alguns aventureiros, que se tornariam o outro componente do futuro povo brasileiro: desclassificados socialmente, sem família, eles se juntaram às índias e geraram os primeiros mestiços que, criados pelas mães, falavam tupi-guarani e se portavam como indígenas.
O número desses mestiços foi crescendo à medida que, com a ocupação do território, os brancos passaram a prear índios e levá-los para trabalhar nas fazendas. Dá para entender por que, até meados do século 18, o idioma de quase todos era a língua geral do Brasil, ou seja, a língua dos índios.
A certa altura, Portugal se dá conta de que estava se formando aqui um país que pouco tinha de português, e então surgiram decretos proibindo que se falasse tupi-guarani nas cidades e tornando obrigatório falar português.
Ao lembrar esses tempos, verifica-se o total desinteresse de Portugal por oferecer formação cultural à nação que surgia. Pelo contrário, a impressão de jornais e livros era proibida. A atividade intelectual só a exerciam os jesuítas, que, para catequizar os índios, ensinavam-os a ler, mas tudo o que liam era o catecismo.
Após perceberem que a melhor maneira de preservar os ganhos da coroa com a nova terra era povoá-la, surgiu a necessidade do escravo negro, mais facilmente dominável que o índio.
Com a vinda dos negros e a miscigenação que aos poucos se deu, integrava-se no processo de nossa formação o terceiro elemento étnico e cultural. Mas até então, não havia a noção de que nascera aqui uma nação, de que todos pertenciam a uma mesma pátria.
Segundo Capistrano de Abreu, isso ocorre pela primeira vez, quando brancos, negros, índios e mestiços se unem para expulsar os holandeses de Pernambuco.
Com o crescimento das atividades econômicas, particularmente do comércio, surgiu uma classe média, cujos filhos iam estudar em Coimbra.
Conquanto, já desde 1551, os colonizadores espanhóis fundavam uma universidade no México e, em seguida, outra no Peru, no Brasil, isso não ocorre nem mesmo depois da vinda de d. João VI, no começo do século 19. Assim, chegamos atrasados à civilização -o que não foi de todo ruim.
Colonizado por nobres de segunda classe e meliantes de primeira, livramo-nos dos fidalgos, o que facilitou a mistura.
Mas devemos muito a Portugal: um Portugal pragmático, sem metafísica. Conhece você algum outro rei que, para escapar ao invasor e salvar o reino, tenha fugido com as jóias e os móveis da Corte? Vão-se os princípios, fiquem os anéis.
Herdamos essa "objetividade" que às vezes se traduz em sensatez. Aqui, não floresceu uma literatura do absurdo nem onírica, e até a ditadura, que nos oprimiu, torturou e matou bem menos que as dos chilenos e dos argentinos; só o necessário...
E, depois, diferente da deles, terminou numa anistia que abarcou todo mundo, perseguidores e perseguidos.
O que passou, passou, bola pra frente. É cinismo, amoralidade ou uma concessão realista pela volta à democracia? Berço de Macunaíma, aqui, pelo menos, jamais surgirá um Bin Laden.
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