domingo, 31 de agosto de 2008



31 de agosto de 2008
N° 15712 - PAULO SANT’ANA


Conversa entre gênios

Estava o Jô Soares entrevistando na última semana o Caetano Veloso. Parei para ouvir, era uma entrevista que se prenunciava interessantíssima.

O Jô Soares é um grande ator de talk-show, ele fala inglês corretamente, toca pistom, tem apurado senso de humor, há 20 anos que assisto, todas as madrugadas, às entrevistas do Jô.

Eu só desligo a televisão e vou dormir quando o Jô Soares leva artistas ou diretores de teatro para entrevistas. Aí não dá para agüentar. Simplesmente porque eu não sou ligado em teatro, 95% da população brasileira não é ligada em teatro. Então, eu não sei por que o Jô Soares gasta assim tanta pólvora em chimango.

Como quase que invariavelmente o Jô abre o seu programa com entrevistas sobre teatro, isso tem me feito dormir mais cedo. Não dá para suportar.

No entanto, quinta-feira passada se encontraram no programa o Jô Soares e o Caetano Veloso, uma dupla talentosa do maior respeito.

Fiquei ouvindo e me deliciando. Até que, estando torcendo eu para que eles abordassem o assunto Chico Buarque de Holanda, acertei na mosca: os dois passaram a abordar o Chico.

Foi quando fiquei sabendo que o Caetano Veloso tem a maior admiração pelo Chico Buarque. Ele é vidrado no Chico Buarque. Chegou até a passar a impressão de que gostaria de ser o Chico Buarque.

Em determinada parte da entrevista, eu fiquei sabendo pelo Caetano Veloso que o Chico Buarque é um grande improvisador, algo assim como era um outro gênio, o gaúcho Jayme Caetano Braun. Era só dar o assunto para o Jayme Caetano Braun, que ele saía na hora fazendo versos sobre aquele tema, fosse na mesa do bar, numa reunião entre amigos ou mesmo no palco.

Esses poetas do improviso, muito comuns no Nordeste ou entre os trovadores gaúchos, talvez sejam a maior expressão da arte falada que se conheça, superior até àquela que julgo a maior de todas as artes: a oratória.

Pois além da oratória, os poetas de improviso constroem versos com a sua fala, empilham rimas, não há nada mais saboroso na face da Terra do que ouvi-los.

Vai daí que o Caetano Veloso disse que o Chico Buarque é capaz de na hora, numa conversa, de improviso, construir a letra de uma música ou de um poema com o maior brilhantismo. E a noção e memória de Chico Buarque sobre rima é um caso espantoso, disse o Caetano. Chico é um poeta nato, congênito, miraculoso, deu-nos a entender o Caetano.

Eu não sabia disso, mas fiquei ainda mais abismado com o gênio de Chico Buarque, para mim, insuperável.

Depois, o Caetano e o Jô abordaram outro gênio. E também tocaram no lado assombroso que sempre destaco a respeito de Noel Rosa. Não é crível que tendo morrido com apenas 26 anos, o estro de Noel Rosa tenha sido tão fantástico como é a sua obra de mais de 300 gravações, algumas delas antológicas, como Gago Apaixonado (samba do gago), em que ele construiu rimas gaguejando, Último Desejo, Feitiço da Vila, Palpite Infeliz.

Que gênio, o Noel Rosa.

Naquela que considero a melhor das músicas de Noel, ele se esmera de uma tal sorte na posição de um verso sobre o outro que ninguém até hoje o superou, nem o próprio Chico Buarque com A Rita.

Refiro-me à obra-prima de Noel chamada Conversa de Botequim, cuja primeira parte é um prodígio de brasileirismo e um conjunto preciosíssimo de expressões:

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa

Uma boa média que não seja requentada

Um pão bem quente com manteiga à beça

Um guardanapo, um copo d’água bem gelada

Feche a porta da direita com muito cuidado

Que não estou disposto

A ficar exposto

Ao sol Vá perguntar ao seu freguês do lado Qual foi o resultado do futebol.

Nunca vi nada igual. Um portento, uma das sete maravilhas da música brasileira. Notável. Extraordinário. O mundo é mais para os gênios.

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