sábado, 16 de agosto de 2008



17 de agosto de 2008
N° 15698 - VERISSIMO


Em branco

Idéia para uma história. Um dia um homem está lendo um livro e nota que, à medida que lê, o texto vai desaparecendo da página. Letra por letra, linha por linha – simplesmente desaparecendo. Como se os olhos do homem aspirassem o que ele lesse, deixando a página em branco. Apesar de assustado (o que é isto?!) o homem continua a leitura.

Quando chega ao final do texto, tem um livro vazio nas mãos. Folheia as páginas brancas e descobre, aqui e ali, algumas coisas que ficaram, porque não foram aspiradas pelos seus olhos. Grande parte da numeração das páginas. Quem lê o número de cada página?

Alguns nomes próprios complicados que ele pulara. Um trecho inteiro de descrição da paisagem (sempre achara aborrecido trechos com muita natureza atrasando a história e se irritava com autores que sabiam todos os nomes da vegetação) que também tinha pulado e permanecera como uma ilha tipográfica no oceano branco das páginas.

O que é aquilo? Que poder – ou que fenômeno oftalmológico, ou que delírio – é aquele? Pega outro livro para ler mas joga-o longe quando se dá conta que é um policial que acabara de comprar, pois tem o hábito de voltar atrás e consultar páginas já lidas dos policiais para não perder o fio da trama. Também precisa ter cuidado para não fazer o teste com algum livro favorito, que goste de reler.

Pega um livro cujo conteúdo não lhe faria falta, cuja aspiração significaria até um serviço para a literatura nacional, e vai abrindo clareiras brancas no texto, com leituras rápidas e salteadas. Incrível! Ele poderia, se quisesse, reduzir enciclopédias a nada. Bastava lê-las.

Poderia apagar mundos inteiros. Capinar com os olhos e deixar fulcros no texto de, sei lá, Guerra e Paz como certos jogadores de futebol fazem no seu cabelo.

Mas, pensa, do que me serve este poder? E então tem a idéia. Naquele mesmo dia vai a uma livraria e compra um livro recém-lançado que quer ler. Lê, e volta à livraria para se queixar.

– Comprei este livro aqui há dias e ele está com defeito.

– Como, defeito? – Veja. O livro está em branco. Totalmente em branco. Só tem os números das páginas.

– Que coisa estranha. Vamos lhe dar outra cópia.

– Não. Quero outro livro ou o meu dinheiro de volta.

– Mas senhor...– Não quero mais esse. Fiquei traumatizado. Quero outro livro ou o meu dinheiro de volta!

O homem passa a ter livros para, literalmente, devorar, de graça. Só deve cuidar para alternar as livrarias e cuidar para que a repetição do truque não desperte suspeita.

– Lembra do livro que eu comprei aqui há um mês e estava todo branco?

– Lembro... – Pois aconteceu outra vez. – O quê?!

– Quero outro livro ou meu dinheiro de volta.

Às vezes o homem não gosta do livro e o devolve antes de terminar a leitura.

– Olhe, metade das páginas está em branco... Quero outro.

Todas as parábolas, mesmo as mais obscuras, devem conter uma lição moral. Ainda mais esta, que, se a entendi bem, é sobre interferências nocivas no funcionamento normal do comércio de livros, na indústria editorial e, principalmente, nos direitos dos autores, além da sofreguidão humana.

Pois eis a lição: um dia o homem começa a regurgitar tudo o que aspirou dos livros por todos os seus orifícios e paga pela sua falcatrua, morrendo no chão do banheiro de uma indigestão de leitura. E bem feito.

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