sexta-feira, 29 de agosto de 2008



FIDEL E AS SUAS CULPAS

Um bom filme deve fazer pensar. Esse é o clichê. Com freqüência, os 'bons' filmes fazem pensar em sair mais cedo do cinema, o que não se faz, em geral, por preguiça ou medo de tropeçar no escuro.

Não é o caso de 'A Culpa É do Fidel', o primeiro longa de Julie Gavras, filha do cineasta grego Costa Gavras, tendo, num dos papéis principais, a filha de Gérard Depardieu.

É a vez dos rebentos. As duas, diretora e atriz, dão conta do recado. A história é simples: quando os pais se tornam comunistas, a filha, de 9 anos, educada num colégio de freiras, sofre com o novo processo de socialização.

Acostumada ao catecismo e à disciplina adequada à boa formação das meninas da elite, vê-se em meio a barbudos num apartamento diminuto, bem longe da vida agradável numa casa com jardim. É o adeus à doce vida burguesa.

Julie Gavras certamente viveu boa parte do que conta com muito humor. Na verdade, é um filme sobre a educação das crianças. Na família e na escola, seja qual for a escolha feita, o processo é sempre de doutrinação.

Cabe incutir uma visão de mundo sob a aparência de neutralidade ou de naturalidade. A pequena Anna passa de um catecismo a outro.

Proibida de freqüentar as aulas de religião, tenta entender a nova 'religião' dos pais e dos seus amigos. É um bom filme para um debate entre os jornalistas que acusam os professores de 'esquerdizar' os alunos e os especialistas que denunciam a mídia de 'direitizar' as pessoas.

O jogo se resume a ideologia contra ideologia. Durante muito tempo, era privilégio da esquerda denunciar a ideologia da direita. Essa situação se inverteu. Julie mostra as falácias dessas posições.

Sem fazer alarde nem apresentar grandes teses, 'A Culpa É do Fidel' aborda o que os pais fazem com os seus filhos em nome das suas utopias, certezas e dogmas. Um olhar simplificador poderá imaginar que se trata de uma crítica aos marxistas da época de Salvador Allende. É mais amplo. Engloba direita e esquerda.

A menina do filme consegue alcançar certa independência em relação às duas forças que a pressionam e tentam formatá-la. Faz pensar nas idéias de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron sobre o processo educativo como reprodução. Raramente se dão informações e se prepara para pensar.

A escola reacionária só quer falar em informações, mas passa ideologia sub-repticiamente. A escola dita crítica muitas vezes distorce as informações para fortalecer certas idéias. Julie Gavras faz a defesa de uma escola livre.

O filme mostra que o processo educativo se dá em todas as instâncias. As babás da família da pequena Anna participavam ativamente na sua formação.

A contrapropaganda estava entrincheirada na cozinha. Fugida de Cuba, Filomena era anticomunista e tratava de assustar as criancinhas com o lobo Fidel. Depois foi a vez de refugiadas com outras perspectivas e comidas exóticas.

Pais, avós, empregadas, amigas, vizinhos e televisão aparecem na tela como atores disputando a cabecinha confusa de uma criança um pouco mais esperta do que eles. O recado é divertido: cuidado com todos.

Dá para brincar, ser feliz na infância e chegar à autonomia, mas convém ficar alerta com as boas intenções de uns e outros.

As histórias da vovó nunca são inocentes. Parte da culpa é do Fidel. A outra parte, que não está no filme, é do Bush. Não existe almoço gratuito. Nem escola neutra.

juremir@correiodopovo.com.br

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