segunda-feira, 18 de agosto de 2008



DORIVAL, O BAIANO CARIOCA

Como se perde tempo na vida. Fazia meses que eu não ouvia uma canção de Dorival Caymmi. Por quê? Falta de tempo.

Andava preocupado com os volantes do Inter, com as provocações do ministro Tarso Genro, com as bravatas do presidente da República e com a vida em prosa. Ouvia música automaticamente.

Escolhia, às vezes, um CD e nem chegava a parar para sentir as vibrações emanadas do aparelho. A morte de Caymmi me deu um tranco. Não que seja uma surpresa. Era um homem de 94 anos. Todo mundo esperava a notícia do seu falecimento a qualquer momento.

Em breve, seguiremos como se nada tivesse acontecido. Essa é a força e a fraqueza da existência. É assim que conseguimos seguir em frente sem nos atolarmos na depressão. Mas é assim também que deixamos de lembrar, freqüentemente, quem merece culto e aplausos eternos. Dorival Caymmi não será esquecido.

Ele e Jorge Amado são a Bahia mítica do século XX. Os dois criaram a Bahia que existe no imaginário de cada brasileiro. Fizeram isso sem mentir, somente recolhendo fragmentos da vida cotidiana.

É impossível esquecer um sujeito que fez 'É Doce Morrer no Mar', 'Marina', 'Samba da Minha Terra', etc. Assim como é impossível esquecer o escritor que pariu Gabriela.

Apesar disso, certo esquecimento é inevitável. Será que as novas gerações lêem Jorge Amado e escutam Caymmi? A força de um construtor de imaginários como Caymmi consiste em ir além de si mesmo. Mesmo que, por acaso, alguém o desconheça por completo, acaba, cedo ou tarde, por cantar algo seu. Afinal, o que é que a Bahia tem?

Tem Jorge Amado, tem Dorival Caymmi, tem vatapá, tem candomblé e tudo mais que Amado e Caymmi mostraram. A poesia de Caymmi ganhou vida própria como os personagens de Amado. Gabriela anda por aí feito Dom Quixote, uma filha que cresceu e foi embora de casa.

Virou imortal. Tem mais vida do que qualquer um de nós. Esse é o paradoxo da arte: não é o artista que se torna imortal, mas a sua obra, os seus personagens, as suas invenções. Capitu e Gabriela não deixarão Machado de Assis e Jorge Amado morrerem.

As canções de Caymmi serão a cada vez um sopro de vida para que o baiano balance numa jangada ao sabor das ondas. Não há obra sem autor. A imortalidade da obra recompensa a mortalidade de quem a criou. É um pacto que cobra os melhores anos da vida em nome da perenidade.

Baiano saudoso, Caymmi morreu no Rio de Janeiro, onde morava desde 1938 e de onde seu corpo não mais sairá. Jorge se foi há mais tempo. Zélia se foi neste ano.

Dorival também partiu. A Bahia está, ao mesmo tempo, mais pobre e mais rica. Perdeu gente de carne e osso. Ganhou novas entidades. A Bahia de Caymmi não é um estado de espírito, mas um espírito estadual que se universaliza. Passei o final de semana ouvindo Caymmi.

A chuva deu mais melancolia ao ritual. Hoje é segunda-feira. A prosa, aos poucos, tomará o lugar da poesia. A falta de tempo, esse truque da engrenagem sistêmica para nos afastar do essencial, acabará por nos engolfar com suas racionalizações.

Mesmo assim, como meninos travessos, podemos cantar baixinho enquanto lemos e assinamos ofícios, 'Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia/ Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia/ ‘Bem, não vá deixar a sua mãe aflita/ A gente faz o que o coração dita/ Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão’'. Não só, que mamãe também se engana, também é feito de Caymmi.

juremir@correiodopovo.com.br

Ainda que com chuva, que possamos ter uma ótima semana

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