sábado, 30 de agosto de 2008



30 de agosto de 2008
N° 15711 - CLÁUDIA LAITANO


Burt Lancaster

No filme Violência e Paixão (1974), o penúltimo de Visconti, Burt Lancaster encarna um professor aposentado que coleciona obras de arte do século 18 (as “conversation piece” do título do filme em inglês, pinturas em que os membros da nobreza aparecem lânguidos e etéreos, acompanhados de seus bichinhos de estimação, em cenas domésticas bucólicas).

Morando em um palazzo italiano que já mostra os primeiros sinais de decadência, “the professor” é o último de uma linhagem em vários sentidos.

O anacronismo se insinua em cada detalhe que cerca o personagem de Lancaster – e essa é uma das genialidades do filme.

Das roupas, excessivamente sóbrias, à decoração da casa, passando pelas imensas estantes de madeira de lei que, a certa altura da história, alguém sugere que sejam substituídas por práticas prateleiras de metal.

Não sabemos sequer seu nome, já que a distinção do cargo parece ser suficiente para situá-lo socialmente. (Em inglês, a palavra “teacher” é empregada para qualquer pessoa que ensina, enquanto o termo “professor”, como ele é tratado, é usado apenas para mestres do ensino superior.)

O filme de Visconti fala sobre o choque de mundos diferentes e também sobre a angústia diante da proximidade da morte. A profissão do protagonista, em princípio, poderia ser qualquer uma, ou mesmo nenhuma, já que o suntuoso palazzo em que a ação se passa foi obviamente herdado.

Mas o fato de ele ser um professor universitário especializado em algo de relevância tão abstrata quanto a pintura inglesa do século 18, ao mesmo tempo em que nos é apresentado como um sujeito respeitado e com prestígio – não apenas entre seus pares da Academia, note-se, mas junto à cozinheira e aos jovens inconseqüentes que se tornam seus vizinhos –, nos faz pensar como o mesmo título, “professor universitário”, pode ser usado para designar profissionais tão diferentes entre si quanto uma estante de madeira de lei e uma prateleira de metal.

Comparar um intelectual italiano do século passado – formado no país que foi berço de algumas das primeiras universidades do mundo (a de Bolonha é de 1088) – e um professor universitário brasileiro dos dias de hoje parece sacanagem.

Em um país em que a educação é tão maltratada, o ensino superior tem todos os problemas do ensino básico e mais os de uma certa “crise de identidade” – uma dificuldade, generalizada em todas as classes, de entender para que, afinal, serve ir para a Universidade (para arranjar emprego? para aprender a pensar? para fazer pesquisa? para fazer amigos?).

Com boa vontade, poderíamos alegar falta de experiência. Esse negócio de universidade no Brasil, afinal, é algo relativamente novo – começou a ser esboçado no século 19, mas só pegou para valer nos anos 30. A Universidade era, até os anos 60 ou 70, assumidamente elitista – e os professores universitários, se não eram o Burt Lancaster, tinham lá o seu prestígio.

Com o crescimento da classe média, a universidade pública começou a não dar conta da demanda de alunos, que passou a ser atendida também por universidades particulares e centros universitários.

Nesse processo, os professores universitários foram perdendo não só o “glamour” e o prestígio, mas o próprio vínculo empregatício – hoje, muitos são horistas.

O fato de o modelo “Burt Lancaster” estar em extinção no Brasil, inclusive nas universidades públicas, é apenas um dos problemas. A lógica de mercado, enfim, foi aplicada às instituições de ensino superior privado – o que pode ter lógica para o mercado, mas não necessariamente para o ensino.

O corte de vagas em cursos de Direito que tiveram avaliações ruins no Enade, anunciado esta semana pelo MEC, nos faz pensar também na quantidade de pessoas que, por ingenuidade ou falta de alternativas, estão hoje, literalmente, pagando para não aprender.

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