sábado, 16 de agosto de 2008



16 de agosto de 2008
N° 15697 - DAVID COIMBRA


Uma novidade de 2.500 anos

Na abertura da Olimpíada, os 2008 chinesinhos que batiam tambores no Ninho do Pássaro entoavam em coro uma pergunta milenar: “Estamos felizes por receber os amigos que vêm de longe?”

Trata-se de uma das mais famosas frases de Confúcio, ele que tantas frases famosas disse.

Curioso. Porque, nesta China em que o topo dos arranha-céus desaparece na fumaça cinza das fábricas, Confúcio, ou Kung-fu-tsé (o mestre Kung), poderia parecer ultrapassado.

E, realmente, logo se completarão cem anos desde que a revolução nacionalista de Chiang Kai-shek decretou o fim do ensino do confucionismo nas escolas e dos concursos públicos pregados pelo Mestre.

Mas não é bem assim. Não se consegue extirpar por decreto uma filosofia de vida velha de 25 séculos. Com a liberalidade econômica e a pressão do capitalismo feroz em que vivem hoje, os chineses começaram a procurar sua própria identidade.

Existe uma curiosidade ansiosa a respeito de Confúcio no país. Uma emissora de TV está preparando um seriado de cem capítulos sobre a vida do filósofo, e a Fundação Confúcio já amealhou 150 milhões de yuans (cerca de R$ 40 milhões) para fazer um filme a respeito de suas idéias e da época em que ele viveu.

Nada disso é por acaso. A onda confucionista foi criada pelo mercado, graças ao sucesso estrepitoso de um livro intitulado “Notas sobre os Analectos de Confúcio”, lançado há ano e meio.

O livro foi escrito por Yu Dan, uma professora de comunicação da Universidade de Pequim. Em linguagem simples, ela tenta contextualizar os célebres Analectos, os ensinamentos compilados do mestre. Resultado: 10 milhões de cópias vendidas.

Tenho aqui em minhas mãos um exemplar dos Analectos traduzido para o bom português, edição pocket da L&PM. Foi me recomendado vivamente pela Cacá Chang, uma das editoras da L&PM, que, você já viu pelo nome, é de ascendência chinesa.

Trouxe-o de Porto Alegre para cá, o livrinho viajou 20 mil quilômetros e atravessou dois oceanos na minha mala. Vou reproduzir alguns dos ensinamentos do Mestre para que você mesmo forme opinião a respeito. Está lá, na página 127:

“O cavalheiro concorda com os outros sem ser um eco. O homem vulgar ecoa sem estar de acordo”

Ou na página 132: “Promessas feitas imodestamente são difíceis de cumprir”.

Ou na 141: “O homem é capaz de ampliar o caminho. O caminho não é capaz de ampliar o homem”.

Que tal?

A traição da batata

Noite dessas, eu e o Tulio Milman fomos jantar num restaurante chinês. Mas chinês mesmo. Trichinês. Pedimos alguns pratos e vieram aquelas travessas do tamanho de uma página da Zero Hora.

Chinês come muito, não sei como eles são tão magrinhos. Tomei dos hashis e comecei a comer uns camarões meio estranhos porém interessantes. Bons, até.

O outro prato que pedi era uma batata desfiada, um montão de batata desfiada. Gostei daquilo. Não era muito fácil de comer com o hashi, mas me concentrei e fui em frente.

O problema é que, no meio da batata, havia uma pimenta, havia uma pimenta no meio da batata.

Aí é que está: não se bota pimenta no meio de uma batata frita desfiada. Era uma pimenta traiçoeira, uma pimenta pela qual eu não esperava e da qual ninguém me falara antes.

Fisguei-a sem vê-la com os hashis e a pus na boca junto com um bocado de batata. Na segunda dentada, senti o fogo do inferno se espalhar dentro de mim. Sabia que aquilo não ia acabar bem, mas o que fazer? Não podia simplesmente cuspir a comida no prato.

Pensei em levantar e sair correndo para o banheiro, mas teria de perguntar onde ficava e eu não podia abrir a boca para falar, com toda aquela comida dentro. Resolvi optar pela resignação filosófica oriental.

Disse para mim mesmo: vai arder, rapaz, mas nem tudo na vida é pudim de leite condensado. Assim, mastiguei corajosamente toda aquela batata com pimenta e a engoli com determinação. Oh, Cristo, o jantar acabou ali, para mim.

Lágrimas involuntárias se me escorriam rosto abaixo e o meu céu da boca ficou todo inchado. Só depois de muitos chopes consegui me recuperar. Mas ainda estou ressentido com a culinária chinesa.

Como pode um peixe vivo?

Outro dia, eu, o Tulio e o famoso fotógrafo Maionese fomos a outro restaurante chinês, esse também extremamente chinês. Pedi um peixe que julguei apropriado para o meu apetite naquele momento em que me recuperava da árdua labuta.

A atendente saiu e, cinco minutos depois, voltou lá de dentro com um caixote de plástico. Parou ao meu lado, com o caixote na mão. Virou o caixote para mim. Lá dentro havia dois dedos d’água.

E um peixe.

Não sei qual era a raça do peixe, mas achei que restava uma centelha de vida em seu corpo frio. Ou ainda vivia ou falecera havia um minuto. – Ele está vivo? – perguntei.

– Não sei... – disse o Maionese, espiando dentro da caixa. – Mortinho – arriscou o Tulio.

Olhei para ele. Tive a impressão de que olhou para mim. De que em seu olhar de peixe bailava um brilho de compreensão desesperada. Como se implorasse:

– Não me coma! Não me coooomaaaa! Tive ganas de responder:

– Bem, meu velho, não comê-lo-ia, se você pelo menos estivesse em um aquário ou em um viveiro, na companhia de seus bons amigos peixes ou de sua amorosa família de peixes, mas olhe a sua situação, aí no fundo desta caixa, a vida se lhe esvaindo escamas afora. Você não conseguirá, rapaz. Não. Não conseguirá.

Quase disse isso tudo para o peixe. Mas como poderia argumentar com um peixe chinês? Sinalizei para a atendente:

– Esse mesmo. E ela o levou para a cozinha.

Voltou envolto em molho agridoce. A melhor refeição que comi até agora, no Oriente Longínquo. Mas, da próxima vez, prefiro não ver minha comida viva. Não gosto que minha comida se mexa.

Nenhum comentário: