domingo, 31 de agosto de 2008



31 de agosto de 2008
N° 15712 - MARTHA MEDEIROS


Gentil demais

Recebi um livro chamado A Arte de Ser Gentil, que tem o dispensável subtítulo A Bondade Como Chave para Sucesso, que, a meu ver, descredibiliza um pouco o autor, o sueco Stefan Einhorn, porque ser gentil deveria ser uma atitude para facilitar as relações humanas, e não uma meta para o sucesso.

Que sucesso? Agora tudo o que a gente faz tem que visar o sucesso.

O texto da contracapa diz que uma pessoa gentil terá mais oportunidades de se tornar feliz, rica, bem-sucedida e realizada, e que o livro fornecerá soluções imediatas e de longo prazo para os interessados em se tornarem seres humanos melhores.

Foi tudo que eu li até agora, a contracapa, e creio que não vou adiante. Primeiro, porque tenho uma pilha de outros livros me aguardando, e em segundo, porque já sou gentil. Nem sabia que sendo gentil eu poderia ficar rica e bem-sucedida e essa maravilha toda. Sou gentil simplesmente porque acho mais fácil do que ser grosseira.

Dispende menos energia. E também porque não vejo graça nenhuma em magoar as pessoas. Até aí, estou no padrão. O que ninguém me ensinou é que gentileza demais pode, por incrível que pareça, ser um defeito, e dos graves.

Óbvio que não se deve ser rude com amigos, parentes, colegas de trabalho, vizinhos, comerciários, mas ser exageradamente gentil com todo mundo pode colocar a nossa vida em risco.

Por exemplo: o que você faz se, ao chamar o elevador de um prédio estranho, à noite, a porta se abrir e lá dentro estiver um sósia do Coringa, com uma cicatriz perturbadora na face e vestindo um sobretudo enorme que poderia muito bem esconder duas pistolas, três granadas e um rifle?

Você simplesmente teria uma vontade súbita de descer pela escada e sumiria de vista.

Pois eu entraria no elevador toda faceira, daria boa noite e faria comentários sobre o clima, pois deus que me livre de ele achar que eu sou preconceituosa e que sua aparência me fez pensar que ele pudesse ser um esquartejador de mulheres. Por que ele não pode ser um pai de família como outro qualquer?

Se eu pego um táxi e o motorista demonstra não ter o menor senso de direção, arranha marchas, não usa o pisca-pisca e tira um fino dos outros carros, eu é que não vou mandá-lo de volta para a auto-escola.

Se ele correr a 200km/h, tampouco solto os cachorros, vá saber o dia horroroso que ele está descontando no acelerador, coitado. Neste caso eu simplesmente “me lembro” de que o endereço onde pretendo ir fica na próxima esquina, e não três bairros adiante, e saio pedindo desculpas pelo meu equívoco.

Se um garçom se aproximar perigosamente de mim com uma panela cheia de óleo fervente, eu não dou um pio, imagina se vou pedir para ele se afastar.

Certamente ele vai me considerar uma elitista estúpida - não basta ter pedido um fondue caríssimo, ainda vou ser grossa?

Nada disso, uma queimadura no braço não mata ninguém. E se eu estou caminhando por uma rua escura e, na direção contrária, vem um adolescente com um gorro enterrado até o nariz e as duas mãos enfiadas numa jaqueta, eu começo a rezar, mas não troco de calçada, imagina o trauma que posso causar no menino: vai ver é até um amigo da minha filha.

Se você tem mais de 9 anos de idade, já sabe o que é ironia e entendeu meu recado: seja gentil, mas não a ponto de perder o tino.

Se tiver que ferir suscetibilidades para salvar sua pele, paciência. Atravesse a rua. Desça pela escada. Dê no pé. Sucesso é chegar em casa com vida.

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