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quarta-feira, 2 de abril de 2008
artigo - Martin Wolf - Valor Econômico - 2/4/2008
Os prudentes pagarão pelos perdulários
Você curtiu uma temporada consumista bancada por endividamento. Mas os tempos agora estão mais difíceis e você está achando impossível rolar sua dívida; tem de pagar juros muito mais altos do que antes; ou descobriu que o valor dos ativos que ofereceu em garantia agora vale menos do que seu empréstimo.
O que você pode fazer? Caso um número suficientemente grande de leitores estiver nessa enrascada, você pede ajuda da fada (governamental) madrinha.
Por isso, George Magnus - do UBS, e um dos mais perspicazes analistas desta crise - já comentou, com alguma aprovação, que a crise "está gerando uma série de ações de políticas públicas bem roteirizadas, mas extremamente não convencionais". Em outras palavras, operações de socorro de diferentes tipos (UBS Investment Research, 27th March; george.magnus@ubs.com).
Pessoa físicas excessivamente endividadas têm apenas três opções: reduzir seus gastos para um nível abaixo de sua renda, vender ativos que possuam para outrem ou, se vier o pior, ficar inadimplente.
Mas a dívida de uma pessoa é um ativo de outra pessoa, os gastos de uma pessoa são a renda de outra pessoa; o que uma pessoa vende, outra pessoa compra; e o calote de alguém é o prejuízo de outrem.
Se um número muito grande pessoas reduz gastos para pagar suas dívidas, a economia desaquece. Se muita gente tenta vender os ativos que possui, seus preços despencam. Se muita gente fica inadimplente face às suas dívidas, acontece uma implosão dos intermediários financeiros. A equação econômica de uma economia inteira não é idêntica à de uma família individual. Esse foi, possivelmente, o ponto mais importante assinalado por John Maynard Keynes.
Por essa razão, argumenta Magnus, hoje "existe um risco bastante grave de que o desaquecimento desalavancador possa ser caótico: a contração do crédito causa contração econômica, que provoca renovadas depreciações de ativos e destruição de capital, o que leva a mais contração do crédito e assim por diante".
Na fase maníaca, a fada (governamental) madrinha só ficou olhando, aplaudindo de longe o entusiasmo hiperativo. Na fase depressiva, a fada é arrastada para o palco, quando o vício do risco transforma-se em aversão a riscos.
Entre seu vale, no primeiro trimestre de 1982, e seu pico, no segundo trimestre de 2007, a participação dos lucros do setor financeiro no Produto Interno Bruto (PIB) americano cresceu mais de seis vezes. Por trás desse boom havia um crescimento da alavancagem em toda a economia.
Alavancagem foi a pedra filosofal que converteu o chumbo econômico em ouro financeiro. As tentativas de reduzir, agora, a alavancagem, criam o risco de transformar o ouro de volta em chumbo.
Hélène Rey, da London Business School, demonstrou como funciona esse processo no setor financeiro ("Globalisation, asset prices and the recent turmoil", www.banque-france.fr). Ela descreve três maneiras pelas quais os mercados falharam: através do modelo "de origem à distribuição", com seus deficientes estímulos à avaliação da qualidade de empréstimos e ampla difusão de ativos de qualidade desconhecida;
através da espiral viciosa dos "credit default swaps", em que os preços crescentes impuseram um custo mais elevado dos recursos financeiros para os bancos, daí uma piora do status creditício e assim por diante;
e, por último, através do colapso do valor dos ativos no mercado, quando vendas em desespero em mercado com escassez de compradores e vendedores, reduzindo a solvência e impondo mais vendas.
Cada instituição que naufraga arrasta outras consigo. A solução que todas desejam é que o governo aja como emprestador de última instância para fazer face a instrumentos ilíqüidos e comprador de última instância de instrumentos comprometidos.
Embora a primeira atividade seja conhecida desde os dias de "Lombard Street", livro de Walter Bagehot, a segunda é um socorro explícito. Mas, para o setor como um todo, qualquer outra maneira de reduzir passivos excessivos é lenta demais, coletivamente danosa, ou ambas as alternativas.
Agora considere um segundo setor crucial: o mercado habitacional nos EUA. Os americanos vêm gastando mais do que sua renda há uma década. De fato, esses gastos têm sido a contrapartida individual mais importante do persistente superávit americano na conta de capital (ou déficit em conta corrente). Nesse processo, as famílias acumularam cada vez mais dívidas.
Como poderiam as famílias, coletivamente, procurar reduzir seu endividamento? Elas podem tentar vender seus ativos. Mas só podem vender as casas umas para as outras, o que, em termos agregados, não ajudaria.
Elas podem vender ações para o resto do mundo, mas os preços poderiam despencar antes disso. Elas pode ficar inadimplentes. Com efeito, isso provavelmente acontecerá com muitas delas.
Mas isso comprometeria a solvência do setor financeiro e, dessa maneira, comprometeria também as contas do governo, devido às operações de socorro, ou os orçamentos de outras famílias, devido a prejuízos com ativos financeiros.
Por último, elas podem reduzir gastos. Mas isso seria sinônimo de recessão, se não de um forte desaquecimento. No quarto trimestre de 2007, a poupança das famílias continuava baixa, em 2% do PIB.
Imagine que a poupança retornasse rapidamente ao nível em que se encontrava no início da década de 1990. Isso seria um aumento de 4 pontos percentuais do PIB.
O resultado seria uma recessão profunda. Não causa surpresa, portanto, que políticos estejam tentando socorrer o mercado habitacional, enquanto o Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA) vem cortando os juros vigorosamente.
Em tais condições difíceis, o governo sempre surge como emprestador, tomador de empréstimos e gastador de última instância.
O governo socorre pessoas e instituições insolventes, seja assumindo ele próprio, ou garantindo, as atividades emprestadoras do setor financeiro privado e, não menos importante, incorrendo em maiores déficits fiscais, à medida que encolhe o déficit financeiro do setor privado.
Não deveria causar surpresa, portanto, que o principal efeito da prolongada crise do Japão nas contas de seu governo foi um crescimento do endividamento bruto do governo de 70% do PIB em 1990 para 180% no fim do ano passado. Em verdade, a alavancagem não desapareceu - ela foi socializada.
De modo análogo, um crescimento do endividamento do governo americano é conseqüência quase inevitável de uma crise financeira prolongada. Um salto na dívida pública significa um aumento invisível nas obrigações privadas de longo prazo. Mas isso é dívida privada socializada: os prudentes pagam pelos perdulários.
Existe uma escapatória da armadilha de endividamento do setor público: a inadimplência em massa denominada inflação. Ao destruir o poder de compra do dinheiro, o governo pode engendrar uma redução rápida do endividamento em toda a economia, às custas dos credores, principalmente idosos e estrangeiros.
A inflação é um imposto mágico sobre credores cuja "tributação arrecadada" é diretamente transferida para os devedores.
No fim das contas, o cenário é claro. Tanto as famílias como o setor financeiro, como um todo, não podem se desalavancar rapidamente, a não ser mediante a calamidade de uma inadimplência em massa ou transferindo sua dívida para outro lugar, geralmente para o governo.
Para uma economia inteira, especialmente se for enorme, é difícil recuperar-se do vício do endividamento. Por mais que possamos abominar a idéia, a hiperatividade financeira do setor privado terminará em dor para o setor público
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