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segunda-feira, 24 de março de 2008
NELSON ASCHER
O grande desconversador
É quase certo que Obama não compartilha dos dogmas desvairados da teologia da libertação negra
A IRRESISTÍVEL ascensão de Barack H. Obama (o "H" é de Hussein, nome que, num consenso tácito, tornou-se impronunciável, como se sua menção fosse um golpe baixo) deparou-se, nas duas últimas semanas, com seus primeiros obstáculos sérios.
Embora quem freqüentasse blogs especializados já soubesse não só de sua associação com o reverendo Jeremiah Wright, como do caráter pernicioso deste, para a maioria dos americanos foi uma surpresa assistir, na TV, ao mentor espiritual do provável candidato democrata à presidência dos EUA proferindo sermões nos quais vituperava contra a América.
Se muitos ao redor do mundo endossariam tais palavras, convém lembrar que, no país em questão, identificar-se com elas não é necessariamente boa propaganda eleitoral.
Compelido a debelar uma crise que tentativas iniciais de negar e mudar de assunto não bastaram para abafar, Obama adotou outra estratégia e apresentou um discurso centrado no tema que, não obstante subjazer onipresente à sua campanha, ele conseguira evitar que viesse verbalmente à tona. Trata-se do tema da raça, das relações raciais.
O discurso, saudado por seus entusiastas (a mídia e a intelectualidade) como superior aos de Martin Luther King e comparável aos de Abraham Lincoln, mereceu, de observadores menos hipnotizados, juízos mais cautelosos, pois, escrita e apresentada por um brilhante advogado de Harvard cujo carisma e oratória nem inimigos questionam, a fala revela-se antes uma obra-prima da evasão e da desconversa.
O veredicto final não saiu, mas ficou patente que, para o senador de Illinois, abolir o passado será mais difícil do que suprimir seu nome do meio.
Se usei acima os termos "raça" e "relações raciais" em vez de racismo é porque este, marcante nos EUA até os anos 50/60, converteu-se, por causa do movimento de direitos civis, no problema residual e confinado a grupos isolados que atualmente é.
A marginalização discriminatória e opressiva de uma minoria étnica por uma maioria cruel ou indiferente, ou seja, o que se chama de racismo, deixou de ser o âmago das relações entre brancos e negros americanos.
O que se vê agora pode ser descrito melhor como balcanização: uma justaposição de duas (na realidade, muitas) culturas que coexistem sem conviver nem se mesclar inteiramente, e isto por vontade mútua.
É quase certo que Obama não compartilha dos dogmas desvairados da teologia da libertação negra que seu pastor professa. Ele, no entanto, com o intuito de criar e consolidar uma base política em Chicago, deixou-se associar à igreja da Santíssima Trindade (Trinity Church), nem poderia, a esta altura, rejeitá-la convincentemente, ainda mais porque sua visão de mundo lhe favorece a campanha.
O que gente como Wright proclama é que, sob formas diferentes, tanto a escravidão quanto o racismo continuam a definir a nação e todos os brancos são culpados até prova em contrário.
O mínimo que lhes cabe fazer, portanto, é compensar material e simbolicamente suas vítimas. Eleger Obama seria um bom começo, e milhões de eleitores imbuídos de má consciência adquirida dispõem-se a aceitar o acordo.
Eis o que uma assessora (logo demitida) de Hillary Clinton quis dizer ao apontar que o candidato se beneficiava da cor de sua pele.
Mesmo assim, não é a questão racial que está no centro de sua candidatura: ela não passa de seu trunfo mais ostensivo e, de fato, colabora com a desconversa que permite ao senador, lançando mão de slogans vazios como "mudança" e "esperança", não explicitar seu ideário constituído das propostas convencionais da esquerda democrata.
Assim, uma vontade generalizada de expiar a história nacional e a capacidade de maquiar idéias de apelo restrito elevaram um novato mal conhecido e com escassas realizações à posição em que se encontra.
Nada disso, contudo, teria sido suficiente se o quadro geral não lhe fosse propício. Uma vez que oito longos anos no poder e a Guerra do Iraque pareciam assegurar a derrota dos rivais, os democratas não julgavam necessário oferecer um candidato competitivo. Daí terem desde cedo coroado outra novata cuja carreira era um subproduto do sucesso de seu marido presidente.
Obama, percebendo o segredo de polichinelo que era a fragilidade de Hillary, entendeu que não seria impossível batê-la nas primárias do partido. E nenhum dos dois imaginava que estas acabariam sendo mais trabalhosas talvez do que a própria eleição.
O resultado imediato desse duplo erro de cálculo é uma disputa interna que, ameaçando ambas as candidaturas, bem como o partido, de implosão, tornou plausível algo ainda há pouco impensável: uma vitória republicana.
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