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terça-feira, 18 de março de 2008
18 de março de 2008
N° 15544 - Liberato Vieira da Cunha
Mutum
Mutum é um lugar que existe em mais uma dimensão: primeiro ele foi apenas um ponto da geografia de Minas Gerais, um lugar encantado e remoto, com a singela e terrível beleza de um fim de mundo, terra fértil mas quase desabitada;
depois, ele existiu na imaginação de Guimarães Rosa, que em 1956 lançou o livro Campo Geral, dentro do qual há uma novela de mesmo nome passada lá no Mutum, com a história do menino Miguilim; agora, ganhou forma e cartaz pelo filme de Sandra Kogut que assim se chama, Mutum.
Está nos cinemas e precisa ser visto por todo mundo que alguma vez foi menino tímido, criança amada e desamada, pequeno ser humano desejoso de conhecer o mundo para lá do horizonte familiar e/ou que tenha precisado haver-se com alguma perda forte.
O filme não requer nenhuma preliminar para ser apreciado, mas necessita de atenção, quando menos para o som das falas, sotaque muito diverso dos que conhecemos na redondeza ou pela televisão. A história se passa num confim do sertão, local afastado de tudo, depois do qual nada mais há; o tempo é agora, sem disfarces;
o ambiente, uma fazenda pobre, onde vive uma família patriarcal, pai, mãe, avó paterna, empregados e cinco filhos, um deles o Miguilim, aliás Thiago (personagem feito com muito acerto por Thiago da Silva Mariz).
O enredo é difícil de resumir sem machucar ou avançar demais: Thiago, de seus 9 anos, está voltando para casa, depois de haver ido à cidade para ser crismado, e vai reencontrar a família: seu querido irmão Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso, o ator), mais jovem e mais tranqüilo que ele, seus outros irmãos, sua avó quieta, e principalmente a mãe (Izadora Fernandes, exemplar no papel) e o pai, um truculento fazendeiro em crise, por um motivo dos mais relevantes para um patriarca como ele - sua mulher, a mãe de seus filhos, uma pessoa triste a partir dos olhos, talvez o esteja traindo.
Tem ainda o tio Terez, irmão do pai, que é quem leva e traz Miguilim/Thiago. Mais não se deve dizer agora, antes de o prezado leitor ir até o cinema.
Ou ir até o livro de Guimarães Rosa, que, como quase sempre ocorre, é melhor que o filme, pelas nuances que pode colocar à disposição do leitor.
Mas dizer isso não implica diminuir o filme, absolutamente: ele nos transporta para aquela secura afetiva da relação do menino com o pai, que julga seu filho alguém que o menospreza, assim como nos mergulha no oceano do afeto de Thiago com sua mãe, um daqueles momentos da vida em que o reconforto engolfa e supera qualquer dificuldade.
Sandra Kogut, em seu filme, teve a sabedoria de deixar implícitos certos momentos narrativos que Guimarães Rosa também deixou na sombra, o que é um acerto enorme em matéria de cinema, esta arte jovem que tantas vezes apela para o óbvio em nome da clareza.
E não cabe dizer mais, porque seria revelar o que o espectador tem que viver lá, na hora.
O filme conseguiu reunir de novo, num mesmo relato, a peculiar mescla de delicadeza, profundidade e atenção para os afetos mais antigos da experiência humana.
Se amanhã será quarta-feira santa, hoje deve ser terça-feira santa. Que ela seja ótima para todos nós.
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