sábado, 22 de março de 2008



22 de março de 2008
N° 15548 - A Cena Médica
Moacyr Scliar


Pequenas ressurreições

A ressurreição de Cristo, que a Páscoa celebra, representou e representa um poderoso apelo à crença, um apelo que até os agnósticos podem avaliar. Isso porque a inevitabilidade da morte é causa de uma verdadeira angústia existencial, contra a qual o Cristianismo oferece um eficaz antídoto.

Mais do que um consolo, a ressurreição representa um triunfo, o triunfo que levou o apóstolo São Paulo a indagar, na Primeira Epístola aos Coríntios: "Ó morte, onde está o teu aguilhão?".

Uma pergunta que médicos e estudantes de Medicina não podem fazer. Poucas profissões lidam tanto com a morte, um desfecho sombrio que muito cedo é introduzido na rotina do aprendizado profissional.

O estudo da Medicina começa pela anatomia, e neste estudo o cadáver é um elemento essencial. Coisa, aliás, relativamente recente: até o fim da Idade Média, os médicos não conheciam o corpo humano por dentro, porque não dissecavam cadáveres.

De nada lhes adiantaria conhecer a localização do baço, porque não sabiam o que faz o baço (na verdade, achavam que o baço era o depósito da chamada bile negra, causa da melancolia).

Mas, à medida que o conhecimento foi progredindo, anatomia tornou-se essencial, e também os cadáveres, que, antes da refrigeração, deterioravam-se rapidamente e tinham de ser substituídos - uma demanda que acabou gerando um movimentado comércio.

No século 19, dois irlandeses que viviam em Edimburgo, William Hare e William Burke, ganharam muito dinheiro roubando e vendendo cadáveres. Quando a "mercadoria" escasseou partiram para o crime, matando os sem-teto que encontravam. Liquidaram assim 30 pessoas até serem presos.

Depois da anatomia vem a fase clínica, e aí a ocorrência da morte é ainda mais dolorosa. O estudante de Medicina vê expirar aquele paciente de quem ele ajudou a cuidar, que pode inclusive ser uma criança.

Fica claro que, apesar de todos os progressos da Medicina, a morte e seu aguilhão têm a palavra final. O desânimo, quando não a depressão, invadem muitos jovens e é até surpreendente que não abandonem o curso. Aos poucos, contudo, uma idéia vai surgindo, resumida na expressão que dá título a este texto: pequenas ressurreições.

Sim, a morte é o resultado final, e a Medicina não pode vencê-la, mas pode obter vitórias parciais. E aí, ver um paciente que estava numa situação muito grave recuperar-se e voltar a sorrir, grato, representa o decisivo impulso de que a pessoa precisa nesta dura profissão.

A grande ressurreição pertence à esfera divina. Mas, as pequenas ressurreições estão ao nosso alcance, nos ajudam a acreditar, nos ajudam a lutar, nos ajudam a viver.

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