domingo, 16 de março de 2008



Ficção diluída resiste na Bahia de nossos dias

Meretriz moderna é dos poucos personagens que lembram universo de Jorge Amado

Obras completas do autor de "Gabriela" e "Dona Flor" são reeditadas pela Cia. das Letras; lançamento terá Chico Buarque e Caetano

Tuca Vieira/Folha Imagem

Estalagem em que Jorge Amado (1912-2001) viveu, no Pelourinho, quando mudou-se de Ilhéus para Salvador; local inspirou personagens e trama do livro "Suor"



SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL À BAHIA


Todo dia, dona Marinalva, 51, acorda cedo, mesmo tendo ido dormir quando já ia alta a madrugada. Aproxima-se da varanda de seu bar, na ladeira da Conceição, em Salvador, e contempla a orla e o oceano que se abrem diante da Cidade Baixa.

Dependendo dos navios que vê ali ancorados, muitos dos quais conhece de prévias ocasiões, sabe que tipo de clientes receberá na noite que virá.

Seu estabelecimento oferece cerveja, comida e "encontros íntimos" a tripulantes de passagem pela cidade.
Buscar na Bahia dos nossos dias os tipos que inspiraram os romances de Jorge Amado (1912-2001) não é tarefa fácil.

Por exemplo, Guma, o marinheiro melancólico e valente de "Mar Morto", não se parece nem um pouco com os pescadores rudes que se vêem na rampa do Mercado Modelo.

Quando se fala em trapiche, então, não é o local onde viviam os Capitães da Areia (do romance homônimo) de que as pessoas se lembram de imediato. Agora, a palavra surge mais relacionada ao badalado restaurante Trapiche Adelaide, freqüentado por vips locais.

O Palace Hotel, na rua Chile, onde o malandro Vadinho leva Dona Flor para jantar no dia de seu aniversário ("Dona Flor e Seus Dois Maridos"), está de portas fechadas. Espiando pela porta, vê-se nada mais do que um guarda dormindo, ao lado de um radinho de pilha.

No Pelourinho, a estalagem onde Amado viveu quando se mudou de Ilhéus para estudar virou uma galeria de lojinhas e um hotel. Na parte de trás, os cômodos antigos ainda existem, mas estão semi-abandonados.

Foi no período em que o escritor morou nesse lugar que surgiram as idéias para "Suor", romance em que figuram árabes, prostitutas, trabalhadores do cais e outros desvalidos.

O próprio Pelourinho, como conjunto, está bastante deteriorado. Sobram poucos sinais da reforma e tentativa de recuperação realizados nos anos 90.

Nesse cenário tão diverso ao que Amado vivenciou e usou para criar seus enredos e personagens, dona Marinalva surge como uma espécie rara.

Conversar com ela é ouvir histórias reais, mas que parecem mágicas, ou vice-versa. Bem que poderiam compor a trama de um dos livros do autor.

Conta que "fez vida" um tempo, depois casou com um italiano "da máfia" que a teria levado para Roma e a maltratado. Então, fugiu e tomou carona num navio que ia para as Filipinas. Passou lá um tempo. Mas, na primeira oportunidade, voltou para a Bahia, sempre a bordo de cargueiros.

Começou, então, a tocar o bar de uma parente. Lugar que, ainda segundo ela, Amado costumava visitar. "Eu contava meus segredos para ele, e ele me colocou em um de seus livros", conta, com olhar saudoso.

No final da ladeira, resiste a igreja de Conceição da Praia, onde os marinheiros buscam proteção. Em "Mar Morto", Amado descreve uma das festas a que acudiam "mulheres embrulhadas em xales" a rezar para que Iemanjá não levasse seus maridos para o fundo do oceano, as "terras do sem-fim".

Ilhéus

O rastro de Amado em Ilhéus, cidade onde passou a infância e parte da juventude, é mais fácil de seguir. Cidade pequena, a praça principal abriga o bar Vesúvio, onde uma estátua desbotada do escritor está "sentada" em uma das mesas.

Em "Gabriela, Cravo e Canela", o local pertence ao comerciante sírio -apelidado de turco- Nacib, que cai de amores pela moça. Hoje o Vesúvio é um point noturno local.

Com música ao vivo -violão, teclado e voz-, recebe os visitantes com o repertório padrão desse tipo de formação em todo o Brasil. A certa altura, tocam "Sampa", causando estranhamento na reportagem, que veio de longe atrás de um mundo mítico para topar com esquina tão familiar.

Mas a grande atração da cidade é o Bataclan, o cabaré-bordel que também ganhou vida em "Gabriela", freqüentado por coronéis do cacau em seu apogeu.

Agora o local chama-se "Espaço Bataclan Decor". Seus vários ambientes -bar, reprodução do quarto da cafetina Maria Machadão, escritório típico de um fazendeiro- são apresentados por um casal de atores. Ele faz o coronel; ela, a meretriz.

A encenação é lastimável e trata o universo de Amado como algo folclórico. A vinheta de propaganda diz tudo: "Os tempos mudaram. Vá ao Bataclan e leve a sua família".

Amado possivelmente tremeria na cova ao ver o ambiente de transgressão que retratou em suas páginas se transformar nesse verdadeiro parque temático para turistas.

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