terça-feira, 25 de março de 2008



25 de março de 2008
N° 15551 - Liberato Vieira da Cunha


As chamas do paraíso

Ao que lembro, o único sorteio que ganhei foi no Colégio das Dores.

Me vi agraciado com uma flamante bola de couro número 5, que não tardou a ser estropiada nos torneios de futebol da Rua João Manoel.

Mesmo assim, não desisto de seduzir a esquiva dama que atende por Fortuna. A cada vez que a Mega Sena acumula 40 milhões, preencho um único cartão, sempre apostando em números invariáveis. Se por engano ou distração algum dia fosse premiado, não compraria um iate, uma Ferrari ou um jatinho.

Me presentearia com uma ilha, pendurada entre o céu e o mar, em algum ponto do Pacífico Sul.

Ergueria ali uma casa ampla, confortável e simples. Ornaria suas paredes com honestas falsificações de bailarinas de Degas e das sombras e luzes de Georges de La Tour. Dotaria as estantes da Lírica de Camões, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, dos heterônimos de Pessoa.

Anestesiaria de Bach, Beethoven e Brahms enseadas e montanhas, horizontes e areias, vagas e palmeiras, mas não de modo a calar a sinfonia dos pássaros.

Despertaria cedo para ouvir o derradeiro canto das sereias, contemplaria o mergulho do último reflexo do luar sobre os corais submersos, receberia os amigos, a aragem do oceano, o azul das tempestades, as amadas por quem penou de paixão meu inquieto coração.

E escreveria. Comporia um livro em que se contivessem vórtices e vértices, desejos e paixões, cenas, frases, momentos, gestos, posses e entregas, êxtases e angústias, palavras esquecidas, reflexões interditas.

Para que, quando frágil me surpreendesse; e não me restassem nem mais o canto das sereias e os corais submersos;

e entrevisse o vulto da Barqueira, batesse um súbito vendaval e o livro e a casa e as bailarinas de Degas e os heterônimos de mim mesmo fossem consumidos em uma legião de partículas imersas nas chamas de luz que desde o início da eternidade ardem no paraíso.

Ótima terça-feira, e para os que começam o mestrado de Economia lá na PUC, cuja aula inaugural é hoje, sucesso e boa sorte nas suas pesquisas e propósitos.

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