terça-feira, 18 de março de 2008



18 de março de 2008
N° 15544 - Liberato Vieira da Cunha


Um pássaro desconhecido

Sou um razoável conhecedor das aves que aqui gorjeiam. Nenhuma delas ganharia qualquer prêmio no quesito originalidade.

São suavemente comuns: o bem-te-vi, o joão-de-barro, o pardal, o tico-tico, o rabo-de-palha, a cambacica, o sabiá e umas poucas mais compõem a sinfonia que me desperta a cada manhã. Mas agora surgiu um pássaro desconhecido.

Nunca o tinha ouvido antes, e desconfio que só dê concertos nestas alturas do Centro. Não o vejo também: permanece indevassável em meio a estes parques que me cercam. Se tivesse que usar um adjetivo para descrever seu timbre, eu o definiria de mavioso, que, segundo o Dicionário Houaiss, quer dizer terno, afetuoso, compassivo.

Não sei se foi a aposentadoria dos bodoques e dos alçapões ou uma súbita conversão ecológica, mas nesse ponto da cidade há hoje muito mais pássaros do que havia em meus tempos de guri.

Não conheço nenhum ornitólogo para consultá-lo a respeito do fenômeno, que no entanto é bem-vindo. É agradável sentir-me cercado por aves, mesmo as ignoradas, como esse pássaro desconhecido. Tem um belo registro de voz.

Está longe de ser monótono, pois interpreta um variado repertório de melodias. Às vezes imagino-o evadido de algum viveiro, escapado de alguma gaiola, desfrutando enfim o doce gosto da liberdade. Algo me diz que é azul, talvez de um azul brando, como o de algumas telas de Renoir.

Mas não importa a cor. O essencial é que permaneça livre, o que me recorda Blake: "Nenhum pássaro voa alto demais, se voa com as próprias asas".

O essencial é que se sinta dono da vastidão dos espaços e olhe a nós, pobres bípedes terrestres, com uma pontinha de orgulho. O essencial é que se perceba senhor de seu destino, por entre prédios e telhados e árvores. Melhor aliás é não saber que pássaro é esse.

A vida carece de mistérios, a começar pelo exato tom do olhar de uma dama que me desafia, provocativo, volta e meia, como se quisesse sondar meu coração e escutar minha alma. Esse olhar e esse pássaro são duas faces de um mesmo enigma: é bom conviver com eles, mesmo que suspeite que jamais vá decifrá-los.

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