quarta-feira, 26 de março de 2008



26 de março de 2008
N° 15552 - Sergio Faraco


O espelho

Para estimular o filho no estudo, em regra as mães lhe comparam o rendimento com o de algum parente ou amigo.

No meu caso, o paralelo era traçado com Josezinho, um menino carioca, sobrinho de uma prima de minha mãe, Tia Loló, nossa assídua visitante. E a cada vez que ela aparecia era portadora de novas e esmagadoras notícias sobre os êxitos de Josezinho.

"Filho", dizia minha mãe, "por que não estudas como o Josezinho, que tirou o primeiro lugar no exame de admissão?" Naquele tempo, ao fim do curso primário fazia-se o exame de admissão para entrar no curso ginasial.

Josezinho, no ginásio, saiu-se com o costumeiro brilho, ao passo que seu parente sulino foi reprovado na segunda série e, na quarta, expulso do colégio, capítulo do qual, por certo, nunca pretendeu jactar-se.

No curso clássico a humilhação foi maior. Tive de engolir tanto o desempenho laureado do primo como o seu gran finale: na formatura, cantou o Hino Nacional em latim.

"Por que não te olhas nesse espelho?", ela lamentava. Bem que tentei. Suei laboriosa tarde com o Ludus quartus do padre Milton Valente, e à noite, à mesa, entoei como por acaso:

Audierunt Ypirangae ripae placidae
heroicae gentis validum clamorem,
solisque libertatis flammae fulgidae
sparsere Patriae in caelos tum
fulgorem.

Ué..., estranhou meu pai. E minha mãe, que era professora de piano: "É o Hino, mas está desafinado". Eu não emparelhava com Josezinho nem como cantor.

Nessa altura já não havia termo de comparação. Eu ficara para trás. Enquanto Josezinho cantava o Hino, eu era soldado em Alegrete, varando as noites de sentinela na guarita do quartel. Nas solidões noturnas, com o mosquetão no ombro, às vezes pensava no grande Josezinho.

Quando ele fez vestibular para o Direito, ninguém precisou me anunciar o resultado. Antes dos professores, antes dele mesmo, eu soube que não só fora aprovado como tirara o primeiro lugar.

E tirou. Entrou para a faculdade, e eu, saindo do quartel, entrei para o serviço público. Por imposição do cargo, tive de me enfronhar nas chamadas Ciências Jurídicas.

Quando pude me formar, após dez anos de faculdade, Josezinho, já advogado, terminava o curso de Medicina e era o orgulho da família, sobretudo de Tia Loló, que ainda visitava minha mãe e a encantava com as novidades acadêmicas do Rio.

Josezinho não se interessou pelo Direito e depois vim a saber que nem pela Medicina, pois resolveu cursar Engenharia Florestal. A mim não me foi dado assimilar tantos saberes, ah, quem me dera, e por não saber fazer outras coisas tornei-me escritor.

Um mau escritor, sem dúvida, mas essa é outra história.

Josezinho continuou estudando e, ultimamente, graduou-se em Publicidade e Propaganda. Disseram-me que passou uma temporada no hospício, mas já está bom.

Disseram-me também que quer ser escritor e andou publicando um livro de versos, o mesmo que, por intermédio de Tia Loló, hoje bem velhinha, ele está ameaçando me mandar.

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