segunda-feira, 24 de março de 2008


MOACYR SCLIAR

Crime a metro

Roubar carnes nobres seria um digno coroamento de sua trajetória; foi o que ele fez: roubou vários quilos de carne

Polícia Civil prendeu em flagrante um homem que tentava furtar carnes nobres em um hipermercado. O suspeito tem uma ficha criminal de cerca de 13 metros de comprimento com mais de 20 tipos de crimes diferentes. Folha Online

DURANTE MUITO TEMPO os dois disputaram a chefia do bando. E disputaram-na ferozmente; mais de uma vez chegaram a se atracar, mais de uma vez puxaram as armas.

Finalmente chegaram a um consenso: aquilo não levaria a nada, não resolveria o problema. Homens inteligentes, resolveram estabelecer um critério que definisse qual dos dois tinha o melhor perfil para o cargo.

E, em se tratando de uma disputa, nada melhor do que recorrer à lei. Sim, porque a lei está acima de tudo, de ambições, de vaidades pessoais. A lei forneceria o veredito final. De que maneira?

Muito simples: aquele que tivesse mostrado mais serviço ao longo do tempo seria o vencedor. E o serviço, por sua vez, seria avaliado pela ficha criminal de ambos. Que não precisaria ser examinada em detalhes: bastaria medi-la, em centímetros ou em metros.

Aquele que tivesse a ficha mais extensa ganharia. Ambos teriam um prazo para incrementar as respectivas fichas com as transgressões que estivessem a seu alcance.

Mas, numa data-limite, a disputa seria encerrada, e as fichas, medidas diante de todos os membros do grupo. Um deles seria então proclamado vencedor.

Quem saiu na frente foi o candidato conhecido como Cicatriz. De imediato, assaltou uma loja e uma agência bancária. No segundo assalto houve tiroteio e uma fuga espetacular;

Cicatriz foi detido e teve sua ficha criminal, que já era grande, atualizada. O tamanho aumentou, passando de um metro e oitenta para dois metros e vinte.

O segundo assaltante reagiu com uma série de minisseqüestros, um deles envolvendo um figurão das finanças. Como o rival, foi perseguido e preso; como o rival, teve sua ficha atualizada.

De um metro e vinte (até então sua atuação no mundo do crime tinha sido relativamente modesta), a ficha pulou para dois metros e quarenta.

O adversário reclamou, achou que havia um exagero; mas, como ponderaram os membros da quadrilha, a lei pode ser dura, mas é a lei, e tem de ser respeitada.

Os dois assaltantes conseguiram escapar da prisão, e a competição teve prosseguimento. E assim, de transgressão em transgressão, as fichas criminais foram crescendo, e logo ultrapassaram os dez metros em extensão. Num golpe audaz, Cicatriz conseguiu envolver-se no tráfico internacional de mulheres e chegou a 12 metros.

O competidor, com a venda de cargas roubadas, também chegou a 12 metros, mas já não sabia mais o que fazer para aumentar a sua produtividade.

Foi então que, por mero acaso, passou por um hipermercado onde havia carnes nobres à venda. Roubar carnes nobres seria um digno coroamento de sua trajetória.

Foi o que ele fez: roubou vários quilos de carne. Preso, a ficha chegou -na data fatal- a 13 metros. Cicariz tinha 12 metros e noventa.

Preso, o triunfante transgressor disse duas coisas. Primeiro: recomendava carnes nobres para os mais finos paladares. Segundo: estava convencido de que, ao contrário do que se pensa, 13 é um número de sorte.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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