sábado, 29 de março de 2008



29 de março de 2008
N° 15555 - O Prazer das Palavras
Cláudio Moreno


Quantas palavras?

Em meio aos balões e docinhos de um aniversário de criança, fui apresentado a uma risonha senhora que, muito faceira, declarou ser leitora fidelíssima desta coluna e, ato contínuo, sem tir-te nem guar-te, desferiu a pergunta que trazia engatilhada: quantas palavras, a meu ver, uma pessoa deve saber para se considerar razoavelmente culta?

Eu, que estava em animado diálogo com um incomparável cachorrinho-quente de festa, com seu molhinho cheio de reminiscências proustianas, prometi, encabulado, que dedicaria ao tema o próximo O Prazer das Palavras, que vem a ser o de hoje.

Confesso que eu próprio, há alguns anos, andei tentando determinar, com um mínimo de precisão, o que poderia se considerar um vocabulário satisfatório para alguém que conclui um curso superior.

Quantas palavras ele deveria conhecer? E um professor como eu, que leciona e escreve há tanto tempo, quantas palavras guarda em seu depósito?

Pois quanto mais perguntava, quanto mais pesquisava, mais me convencia de que é impossível chegar a uma cifra aceitável; basta dizer que lingüistas famosos, ao fazerem estimativas sobre o léxico que um profissional recém-formado deve dominar, sugerem números que vão de escassos 12.000 a espetaculares 70.000 vocábulos.

Essa discrepância impressionante de opiniões tem justificativas bem concretas. Em primeiro lugar, não sabemos se aqueles cientistas levaram em conta, para seus cálculos, o vocabulário ativo ou o vocabulário passivo.

O primeiro, sempre menor, é composto daquelas palavras que me vêm à mente quando escrevo ou quando falo; o segundo é formado pelas palavras que reconheço no texto ou na fala das outras pessoas.

Quem estudou uma língua estrangeira sabe muito bem que o segundo, o passivo, chega a ser duas ou três vezes maior do que o ativo.

Em segundo lugar, o meu léxico não se resume a uma lista, maior ou menor, de palavras, mas inclui também - e é esse o fator que acaba com qualquer precisão nas estimativas - um estoque de elementos mórficos do nosso idioma (sufixos, prefixos, radicais gregos e latinos), bem como as regras que me permitem combiná-los.

É esse "saber" que me possibilita decompor, facilmente, o significado de palavras que eu jamais tinha visto antes (e que não faziam parte, portanto, nem do meu vocabulário passivo).

Como já estou acostumado ao radical grego filo ("amigo, apreciador"), que enxergo em pedófilo e cinéfilo, meu olho nem pisca quando leio, no jornal, que "bochófilos argentinos, chilenos e uruguaios vêm participar de um torneio em Venâncio Aires".

Depois que o cacerolazo argentino foi editado aqui com o nome de panelaço, o sufixo "-aço" ganhou também esse significado de "manifestação de protesto", produzindo-se, em seguida, bandeiraços, apitaços, tratoraços e sinetaços -

o que me permite entender também o que sejam os beijaços, sessões de beijocação indiscriminada que o movimento gay vem patrocinando, em vários pontos do país, como forma de repúdio ao não-reconhecimento da união legal entre homossexuais.

A rigor, essas palavra não estavam registradas em meu vocabulário, mas assim mesmo eu decifrei instantaneamente seu significado.

E aí? Elas entram no nosso cálculo? Certamente meu leitor deverá ter percebido que temos aqui um saco sem fundo, já que o número dessas palavras potenciais é praticamente infinito.

Quem possui um estoque básico de elementos gregos e latinos, por exemplo, vai decifrar muitas combinações no momento em que as vir pela primeira vez.

Para que meus alunos do curso de Direito se dessem conta disso, eu costumava resolver pequenas equações morfológicas: se hipopótamo significa, literalmente, "cavalo do rio", e meso significa "no meio", fica claro por que se chamava de Mesopotâmia a região entre os rios Tigre e Eufrates- e por que a região de Entre Rios, entre o rio Uruguai e o Paraná, é conhecida como a "Mesopotâmia argentina".

Era um desafio ao raciocínio e à dedução, mas, é claro, nem sempre produzia o resultado esperado. Uma questão de prova tinha o seguinte enunciado: "Se misógino é o que tem aversão às mulheres, e bígamo o que casa duas vezes, o que seria um misógamo?".

Dois ou três iluminados acertaram: "aquele que tem aversão ao casamento" - mas os demais demonstraram um esforço comovente e uma criatividade delirante:

"o que casa duas vezes com a mesma pessoa"; "quem não consegue casar"; "o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo"; "alguém que detesta ter uma só esposa";

"quem casa com parente"; "uma pessoa com duas personalidades"; "quem casa com pessoa de raça diferente"; e, por fim, mas não menos estarrecedor, "quem contrai meio casamento". Bem, não digam que eu não tentei... Mas o tema continua.

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