segunda-feira, 24 de março de 2008



FINGIMENTOS

Tenho fingido, com sucesso, parecer muito mais ignorante do que realmente sou. É uma estratégia que adula meus adversários, permitindo-lhes sentir-se muito cultos.

O erudito costuma ser uma idiota com excesso de memória. Se conseguisse fazer algo com aquilo que decorou sem mesmo querer, seria um gênio. O afetado costuma ser um idiota desmemoriado.

Meu desempenho tem sido tão bom que comecei a acreditar nele. Foi assim que acabei igualando Sócrates com mais de dois milênios de atraso. Outro dia, acabei concebendo esta fórmula: eu só sei que nada sei.

O vulgo chamaria isso de plágio. Eu, intelectual sofisticado, rotularei esse acontecimento de co-autoria deslocada no tempo. Algo assim já aconteceu com Nietzsche, que teve a idéia do eterno retorno sete anos depois de ter zombado de uma concepção cíclica da vida.

Alguns leitores acham difícil de entender quando começo com citações desse gênero. Mas é simples. Sou megalomaníaco. Meu objetivo é ser pior do que todos os cronistas brasileiros em atividade em nossos jornais.

Finjo, por exemplo, detestar todo mundo. A manobra é tão eficiente que encobre até as minhas declarações de amor.

O problema é que certas pessoas pretendem ser críticas e cultas quando apenas repetem lugares-comuns apreciados, os chamados clichês afetados ou para demonstração de uma cultura inexistente.

No Brasil, é lugar-comum admirar a 'grande dama do teatro' mesmo só tendo visto as suas atuações em novelas baratas ou em filmes patrocinados.

Os nossos verdadeiros ignorantes são sábios. Já os nossos homens de bom gosto costumam não ter gosto algum, salvo aquele prescrito pela moda.

O elogio afetado honra menos o elogiado do que desonra o autor do elogio. Houve um tempo em que culto era aquele que sabia criticar mesmo os aparentemente incriticáveis.

Era uma época em que se podia saudar a genialidade de Kafka e, ao mesmo tempo, afirmar que em 'A Metamorfose' o estilo está ausente.

A força do livro vem da invenção de um novo ponto de vista. Quando a ignorância afetada predomina, o fã toma o lugar do fruidor e o clichê impõe elogiar um estilo inexistente. Aí é que mora todo o imenso perigo.

O afetado confunde fama e reconhecimento com talento, especialmente quando se trata dos chamados valores da alta cultura. Costuma atacar não a deficiência do argumento alheio, mas o currículo (ou falta de) do seu autor.

É uma variante do 'você sabe com quem está falando' transformada em 'quem é você para estar falando'. Em conseqüência, só reconhece argumentos de autoridade, os quais, com freqüência, pecam por autoritarismo ou por equivaler ao julgamento do não autorizado.

O afetado gosta de frases tais como 'Ulisses é intocável', depois de ter lido uma tradução. É o mesmo tipo de sujeito que garante ser impossível traduzir sem perda de qualidade sem lembrar que toda leitura é uma tradução, mesmo aquela feita no original.

O afetado denuncia como chato tudo aquilo que não consegue entender e garante ser genial tudo aquilo que coincide com o seu gosto aprendido em cadernos culturais e outras vulgatas.

O afetado adora efemérides e não suporta reparos aos seus ídolos. Deseja negar evidências com decretos de fé. Exemplos que o horrorizam: o primeiro Machado de Assis foi escritor medíocre.

O mulato Machado de Assis foi um alienado que não se empenhou na denúncia da escravidão. Estava preocupado demais em ser aceito pelos brancos.

juremir@correiodopovo.com.br

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