segunda-feira, 31 de março de 2008



A crise financeira - reflexões

Fernão Bracher artigo -Fernão Bracher - Valor Econômico - 31/3/2008

A presente crise financeira localizada no Hemisfério Norte (por enquanto só financeira) tem as suas linhas gerais já bem estabelecidas: a grande liquidez, a pouca regulamentação, a baixa eficiência das análises de crédito e das agências classificadoras de risco, o grande desenvolvimento das operações com derivativos, ocasionaram grande concentração de riscos imobiliários de menor qualidade nos Estados Unidos que, pela securitização dos créditos, espalharam-se pelos grandes centros do Hemisfério Norte.

Aqui e ali, no segundo semestre, uma gota d´agua (um fundo que deixa de operar, um banco que sofre uma corrida) e o copo transborda.

O rei fica nu e todos se assustam com a magnitude do problema. A reação comum é a do medo, da desconfiança. A falta de regulamentação ou normas que são contornadas, tiram a transparência.

Nenhuma instituição financeira sabe exatamente a situação do seu vizinho, sem falar na sua própria situação. Balanços são refeitos, resultados corrigidos e sempre para pior. Qual o valor correto dos meus ativos? E dos ativos dos meus concorrentes?

Há liquidez, mas ela está "empoçada". Todos se fecham. Não há uma autoridade monetária mundial. Também o problema é interno de cada país, mas no regime de conversibilidade total do mundo desenvolvido, o que se passa em um país flui sem dificuldade para os outros.

Os bancos centrais das grandes moedas, dólar, euro, libra, colocam liquidez à disposição dos seus respectivos sistemas, num esforço de contornar o empoçamento.

As autoridades monetárias ao tratarem desse assunto estão, em primeiro lugar, envoltas na situação do "comportamento de manada" e, em segundo, têm como pano de fundo duas regras não escritas, subjetivas e por isso pouco explícitas que se enunciam normalmente em inglês: "too big to fail" e "moral hazard". A proposta deste artigo é comentar brevemente esses três aspectos.

"Comportamento de manada" é exatamente o que estamos vivendo. Dado um fundamento negativo concreto, como no presente caso, instala-se o medo e, coletivamente, nas instituições financeiras, dos operadores aos departamentos de crédito, passando pelo controle de risco, até a mais alta direção cria-se em todos uma aversão ao risco.

Pelo fato de ser generalizado e ser desmesurado, esse comportamento dificulta a normalização do mercado e a atuação das autoridades.

Para remediar a situação há inúmeras providências e a todo momento estamos vendo a atividade dos governos e bancos centrais nesse sentido.

A ruptura de um banco tem repercussões danosas em toda a atividade econômica e pode causar prejuízos sérios a inúmeros agentes

As duas regras não escritas às quais nos referimos mais acima são, como dissemos, "too big to fail" e "moral hazard". Por "too big to fail" entende-se que uma instituição financeira muito grande não pode quebrar. Isso não está escrito em nenhum lugar mas é de aceitação pacífica. E não está escrito exatamente porque sua aplicação depende totalmente do julgamento da autoridade.

O que é muito grande? Numa situação de absoluta calma, o mercado poderá, talvez (a juízo da autoridade), suportar uma grande quebra. Já numa situação em que se instalou um "movimento de manada", um banco médio já pode tornar-se "muito grande".

Assim foi que o Bank of England, depois de hesitar, interveio no Northern Rock, honrando seus depósitos e, nos nossos dias, as autoridades americanas, usando do seu poder de mando e do dinheiro público, tornaram possível a solução do problema do Bear Stearns.

É o que em outras circunstâncias nós já fizemos com o Proer, o que o governo francês fez com o Credit Lyonnais e o governo sueco fez com todo o seu sistema bancário há alguns anos, para não falar no japonês, no chileno, no mexicano...

A segunda regra é o conceito do "moral hazard". É uma idéia muito difundida e de difícil tradução, literalmente, risco moral. O que se entende por isso é "o risco que há de se deixar uma malfeitoria sem punição".

O mercado se comporta mal, é imprudente, ganha dinheiro e na hora em que vem a borrasca, vem também o Banco Central, ajuda, e todos vão para casa muito sossegados e ricos. Isso é que deixa as pessoas indignadas e as fazem criticar certas ações de acomodação das autoridades monetárias.

Também aqui temos o problema do mandamento não escrito e a necessidade de um julgamento subjetivo para seu entendimento. É certo que não se deve tirar o risco do negócio. Ao arrojado o seu prêmio ou o seu prejuízo.

Ocorre, porém, que a atividade financeira, diferentemente de outras, estabelece vasos comunicantes com todas as atividades sociais. A ruptura de um banco tem repercussões danosas em toda a atividade econômica e pode causar prejuízos sérios a inúmeros agentes.

Para evitar essa ocorrência é que o negócio bancário, como nenhum outro, é inteiramente regulamentado: exigência de capital mínimo, regras para riscos, normas para transparência etc. Tudo para tornar o risco que as empresas devem correr, suportável com recursos próprios.

Se, porém, isso não acontece, a autoridade tem responsabilidade pelo mercado. A regra básica aí é que, qualquer auxílio dado será excepcional, com o objetivo de evitar prejuízos maiores a terceiros, e não deve servir nem aos acionistas, nem aos executivos da instituição auxiliada.

O apoio é dado com dinheiro público e tem que servir a propósitos públicos, do bem comum.

Dentro dessa linha, que - como se vê é carregada de julgamento subjetivo - é que se deve entender o "grande demais para quebrar" e as intervenções abaixando a taxa de juros, que beneficiam as instituições e facilitam a solução da crise.

Essas as reflexões que nos ocorrem. Elas dizem respeito às dificuldades práticas de implementação das políticas escolhidas dentro do contexto de medidas macroeconômicas eleitas. Esperamos que o texto ajude a entender um pouco mais a situação.

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