sábado, 15 de março de 2008



15 de março de 2008
N° 15541 - O Prazer das Palavras - Cláudio Moreno


Desapercebido

Você distingue despercebido de desapercebido, leitor? Parece fácil: um vem de perceber, velho conhecido nosso; ao lado do significado comum de "notar", indica também "receber ordenados, rendas, lucros, vantagens".

O outro vem de aperceber, hoje de uso raríssimo, que significa "abastecer, preparar-se, acautelar-se", como podemos ver no dicionário de Morais (1813): "apercebido de armas, munições e gente" (provido); "os portugueses, sempre apercebidos, vigiando-se dos mouros" (acautelados); "apercebeu-se para a morte" (preparou-se).

Camões diz que o pequeno Davi enfrentou Golias "só de pedras e esforço apercebido". Machado descreve os confrontos entre os fãs das cantoras líricas do Rio de Janeiro como "batalhas campais, com tropas frescas, apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até estalinhos"

Nada mais natural, por isso, que os respectivos antônimos guardem a mesma diferença. Desapercebido é o que não está prevenido, nem preparado; encontro, no Morais, "desapercebidos de pólvora, armas e navios".

Despercebido, por outro lado, significa aquilo que não se percebeu: "o gesto não passou despercebido dos que assistiam à cena". É assim que está em nossos bons escritores.

Em Eça de Queirós, o pecaminoso padre Amaro esgueirava-se com sua namorada, "despercebidos da Totó", velha doente e entrevada. Machado fala de uma obra que "passou despercebida no meio da indiferença geral". Euclides da Cunha descreve uma manobra dos jagunços, em Canudos, "um movimento contornante despercebido", que pegou o exército de surpresa.

A nos guiarmos pelos exemplos acima, um gesto jamais poderia passar desapercebido, como dizem por aí, porque seria o mesmo que dizer que o gesto passou "desprovido, desprevenido, despreparado". Gestos só podem passar despercebidos!

Pronto, arguto leitor! Pão, pão; queijo, queijo? Acabou a confusão? Ledo engano! Há fortes indícios de que a diferença entre essas duas formas não passa de uma engenhosa ficção de lingüistas de gabinete, adotada pelo mundo letrado do séc. 19. Em primeiro lugar, já é muito esquisito o fato de existirem dois verbos tão parecidos (perceber x aperceber) que só se distinguem por um

A inicial - um fonema que, nesta posição, tem muito pouca personalidade, como se pode verificar em dezenas de situações em que duas variantes disputaram, ao longo da história da língua, a preferência dos falantes - alevantar e levantar, amostrar e mostrar, sentar e assentar, assoalho e soalho, entre muitas outras.

Além disso, a confusão entre as duas formas não é nova, como muita gente pensa, nascida na linguagem descuidada da televisão ou da injustiçada internet. Na verdade, despercebido e desapercebido vêm sendo usados um pelo outro desde sua origem.

O próprio Morais (repito: a edição é de 1813) parece completamente enredado; quando fala num, parece estar pensando no outro, pois define perceber como "aparelhar-se" e percebimento como "o ato de aperceber, ou aparelhar-se"...

Eça não fica atrás, e menciona, em Os Maias, um detalhe "que passou desapercebido no grande escândalo". Alencar, esse não hesita nunca: usa apercebido e desapercebido o tempo todo, alegremente.

Euclides também mistura uma forma com a outra: falando da ignorância geral dos praças do exército, diz que a soldadesca era "inapta ao apercebimento da lei física que explicava [tais fatos]" (em lugar de percebimento ou percepção). É como se as duas formas estivessem disputando, num cabo-de-guerra vocabular, a supremacia no uso.

Ao que parece, desapercebido vai pouco a pouco ganhando terreno sobre despercebido, que ainda desfruta, no entanto, a preferência dos que escrevem. Uma pesquisa rápida no Google ainda dá vantagem a este último, que alcança o dobro das ocorrências do primeiro, mas não seria de espantar se, em algumas décadas, os dois estivessem empatados.

Como um bom dicionarista sabe que não pode interferir, onipotentemente, nos fatos da língua viva, e que sua função é basicamente a de fornecer um espelho ao idioma, tanto Aurélio quanto Houaiss fazem questão de dizer que os dois vocábulos são usados indiferentemente.

Houaiss ainda vai mais longe, aproveitando para dar uma palmada merecida nos velhos gramáticos empíricos: "desapercebido e despercebido foram objeto de censura purista, acoimados de falsa sinonímia; no entanto, ante o emprego desses dois vocábulos como sinônimos por autores de grande expressão, quer no séc. 19, quer no início do séc. 20, a rejeição faz-se inaceitável".

Como eu já disse em outras ocasiões, usar um vocábulo pelo outro, eu não faço; prefiro manter a distinção entre eles e, quando me perguntam, aconselho também a mantê-la, porque tenho para mim que a perda de uma distinção é sempre um empobrecimento do idioma. Mas, repetindo meu mestre Celso Pedro Luft: e os outros com isso?

Professor, doutor em letras, moreno@terra.com.br

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