sábado, 22 de dezembro de 2007



23 de dezembro de 2007
N° 15457 - Luis Fernando Verissimo


Atrás da minha turma

Agora que já estou jogando na prorrogação e todo Natal e todo fim de ano chegam como uma surpresa - o que, outro?! - e preciso organizar um pensamento solene para a ocasião e nenhum pensamento solene me socorre, agora que meu sangue se encaminha para o lugar da sua quietude como li certa vez num poema asteca,

agora que todas as garrafas que lancei ao mar com mensagens ao desconhecido voltaram sem resposta, ou com o texto corrigido, agora que nem o eco responde aos meus gritos no precipício, ou responde mas com o tom enfarado de quem não agüenta mais repetir sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa,

sempre a mesma coisa, agora que descobri que nenhum dos meus gurus tinha a resposta certa e um até confessou que era surdo e nem ouvira as minhas perguntas e só fazia sim com a cabeça por boa educação, o que explica ele ter respondido sim quando eu perguntei se deveria seguir o Bhagavad Gita, o Kama Sutra,

O Capital ou uma combinação dos três, agora que já não se distingue a voz e uma secretária de outra no telefone pois todas são eletrônicas e iguais, e da última vez que implorei por um contato humano, alguma coisa viva - uma hesitação, um erro de concordância, um resfriado,

até, em último caso, uma reação irritada - a voz disse "para reação irritada, digite 4", agora que eu não quero mais respostas, agora que eu desisti, vêm me dizer que eu não estou sozinho, que há outros como eu cujo sangue outrora borbulhante atingiu um remanso e já não esperam mais nada salvo a resignação dos mortos num bom sofá com controle remoto e talvez pipoca,

que abominam a despersonalização, principalmente das pessoas, a pulverização de todas as certezas, o espargimento de todas as dúvidas, a eterização de todas as coisas - e que eles têm um site na internet no qual podemos trocar desânimos?

Mas me deram o endereço errado pois, na minha caça desesperada a ávidos de resignação e burrice programada como eu, dei num site que ensina a fazer bombas caseiras, outro de quem tem tara por Matildes, outro de onanistas compulsivos, cheio de erros porque presumivelmente todos os textos são digitados com uma mão só, outro de um homem que propõe a troca de fotografias do seu bigode ridículo com as de bigodes ridículos de todo mundo com a possibilidade de casamento, e um de alguém que propôs comprar vários dos meus órgãos para comer.

Não que eu fosse aceitar, sou muito apegado a todos os meus órgãos apesar do que alguns têm me feito passar, mas só por curiosidade perguntei como ele prepararia, por exemplo, meu fígado e, num rasgo de sentimentalismo, sugeri que o servisse como o do ganso, acompanhado de um Sauterne de boa safra.

Talvez seja essa a auto-indulgência que nos reste, no momento do nosso desencanto, antes do último sofá.

O de determinar que vinhos acompanhariam nossos órgãos à mesa, para tentar garantir uma boa impressão final, já que nada nos garante uma boa posteridade. Sirvam meus rins, vá lá, com um nacional de primeira linha, mas desagravem meu coração com um Grand Cru de Bordeaux.

O tal cara que estava a fim das minhas tripas a moda de Caen não respondeu mas descobri que eu tinha entrado num fascinante mundo doente, ao entrar na internet atrás da minha turma.

Quando tudo se volatiza e vira impulso pelo ar o que sobra é isso, o ser humano reduzido às suas fomes e às suas esquisitices primevas, livre de qualquer controle ou compunção.

A cara mais terrível da liberdade: cara nenhuma, ou apenas a cara que se quiser escanear e mostrar na net, sem garantia de que seja mesmo a nossa. Terroristas, fetichistas e canibais são - ou espero que sejam - minorias entre os habitantes deste mundo, e se sexo é o assunto preferido da maioria é porque sexo, no fim, é a preocupação dominante da espécie, nada de novo.

Mas, sei não. Há algo de assustador nessa variedade de prospecções predatórias, de buscas globais por afinidades estranhas, só esperando o toque numa tecla de computador para entrar na nossa casa e na nossa vida.

Quem me assegura que eu não tenho alguma obsessão secreta (pés de noviças, sei lá) só esperando um correspondente para se manifestar?

Desisti de localizar meus similares na internet, os revoltados até com a revolta, começando por secretárias com voz de máquinas, quando me dei conta de qual seria a primeira condição para pertencer à minha turma. Seria não freqüentar a internet.

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