terça-feira, 18 de dezembro de 2007



18 de dezembro de 2007
N° 15452 - Scliar


Ao volante, somos dois

É uma cena que, dirigindo, vemos todos os dias. Estamos numa avenida com tráfego congestionado; um motorista quer passar de uma fila de veículos para a outra.

Se tentá-lo, mesmo com o pisca-pisca ligado, não vai conseguir; nenhum motorista o permitirá. Mas se gentilmente buzinar, e fizer um sinal - aceno da mão com o polegar para cima - certamente alguém lhe dará lugar.

São as mesmas pessoas, nos mesmos carros, nas mesmas circunstâncias, mas podem mudar subitamente de atitude, lembrando o Dr. Jeckyll e o Mr. Hyde de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson.

A verdade é que temos, dentro de nós, dois motoristas. Um que vê o automóvel como um meio de transporte, algo que nos ajuda a viver em sociedade e que foi feito para facilitar a aproximação, física e emocional, entre pessoas. Este motorista é uma pessoa calma, tranqüila, amistosa, sorridente.

O segundo motorista, ao contrário, é um transtornado, que dirige com uma expressão de fúria, grita, resmunga e buzina o tempo todo. Este segundo motorista é mobilizado pelo símbolo de poder que é o carro; um poder que, aliás, a publicidade enfatiza, ao mostrar ao volante gente aventureira, arrojada, que corre em alta velocidade.

Façam a experiência que eu fiz: digitem no Google as palavras "car" e "aggression". Vocês encontrarão mais de 2 milhões de referências. Aos olhos de muitas pessoas, quanto mais agressivo é o carro, melhor.

O resultado sabemos qual é. Entre os jovens do sexo masculino, os acidentes de trânsito são a segunda causa de mortalidade no Brasil, atrás apenas das mortes por armas de fogo, não por coincidência, aliás: em realidade, estamos falando de dois tipos de armas. São cerca de 40 mil mortes por ano, uma cifra que claramente nos fala de catástrofe.

São 20 mortes para cada 100 mil habitantes; apenas para comparação, na Austrália, que, como o Brasil é um país jovem, esta taxa é de sete óbitos para cada 100 mil habitantes.

As entrevistas feitas com pessoas causadoras de acidentes de trânsito apontam sempre um denominador comum: o estresse. É gente que dirige em estado de tensão emocional, uma tensão que às vezes tentam diminuir da pior forma possível, com o uso do álcool.

Para essas pessoas vale o recado que figura num cartaz publicitário (obrigado, Anita Brumer), e no qual o próprio Todo-Poderoso se dirige ao motorista: "Não beba. Você ainda não está pronto para me encontrar".

O pior lugar para confrontar-se com a visão da morte é a estrada. Para evitá-lo, entregue o volante ao motorista que, dentro de você, encara a vida sorridente, com o polegar para cima. A propósito: o polegar para baixo era o sinal com que os imperadores romanos condenavam à morte o gladiador derrotado.

E isto nos lembra mais uma vez que estrada não é arena de luta. Coisa para a qual a campanha que a RBS está lançando amanhã, "Violência no trânsito: isto tem que ter fim", é uma importante colaboração.

A idéia começa a aflorar: times de futebol mistos. Já imaginaram Marta e Kaká no mesmo time?

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