sábado, 15 de dezembro de 2007



MEU FIM DO MUNDO

Há 20 anos, em Paris, eu comecei a escrever o meu primeiro romance, 'Cai a Noite Sobre Palomas', pensando numa imagem do fim do mundo. Ao voltar da Terra do Fogo, senti vontade de me reler. Vila e vidraça eram um único signo na mente de Paulo Bicca.

Escondida sob a forte chuva de inverno, Palomas lembrava uma imagem devastada pela tristeza dos anos sem fim. A passagem do tempo rumo à morte inexorável realçava a palidez do cotidiano de homens sem fé no futuro. A água batia sobre as casas e rolava espessa, cobrindo as janelas na semi-escuridão.

Os moradores do Pueblo de las Palomas – referência a um mítico imaginário de espanhóis valentes e andarilhos – temiam que a chuva nunca cessasse. Chover, chover e chover. Mesmo conscientes do absurdo, entregavam-se ao medo e à barreira do tempo fechado. O horizonte opressivo desencadeava a obsessão e o mistério. Eu me lembro...
A água empapava o capim da cobertura dos ranchos e rolava fria sobre os pouco mais de 300 habitantes. Embaçada, Palomas assemelhava-se a um quadro movediço feito mais com a engenhosidade do artesão que com a beleza da arte.

O vulto solitário de um animal, quase indefinível na paisagem escura, assinalava a persistência do real – a supremacia da vida e do desespero frente à morte e ao tédio.

Havia uma estranha beleza nessa capacidade brutal de sobrevivência. A chuva varava os meses e tornara-se, por fim, mais palpável do que a própria carne. A repetição passou a reger os braços. Não existiam segredos, mas a transparência produzia a opacidade.

Homens perdidos na imensidão do pampa – vazios e velhos desde sempre, esgotados apesar da força da história – olhavam através da chuva, sem denunciar o terror a corroê-los, e enxergavam a verdade: os valores arraigados são hábitos destituídos de paixão.

Apenas a rotina tinha sentido naqueles dias intermináveis, coloridos de cinza e mágoas e perfumados com o cheiro doce das folhas de eucaliptos ensopadas. Pensava-se na Vila como em um território maldito, na fronteira entre a possibilidade do êxito e a evidência do fracasso.

Palomas poderia produzir o suficiente para alimentar a sua escassa população e ainda exportar carne bovina. Não o fazia. O desencanto ultrapassava a pobreza, conforme uma lógica particular de contradições e surrealismo.

Vivia-se para o mínimo existencial, a sobrevivência do corpo. A miséria ceifava poucos habitantes. De fome ninguém morria.

Bicca acreditava que a impotência da alma vinha da chuva, responsável por um legado de desgraças. Em 1823, quando do Massacre da Cordilheira de Palomas, um certo Benito Rodrigues Rivera teria condenado a Vila ao ser morto durante uma tempestade.

No Uruguai, ficou conhecido pelos turvos vínculos com o sobrenatural. Mescla de filólosofo e feiticeiro, jurava extrair poderes da água, a base do universo, segundo aprendera com os gregos. Palomas cumpriria o destino da tormenta eterna. Que horror!

O branco alternava-se com o marrom do barro, visível nas partes mais elevadas da região, e o verde das coxilhas não afogadas pelo aguaceiro. Bicca pensava na sua alma, uma alma marrom como os olhos do cão junto à porteira, e chorava ao entardecer.

A noite chegava lenta e prenunciava o fim, o esgotamento das energias de sobrevivência. Ao crepúsculo, lutava-se contra dois cruéis sentimentos: a sensação de estabilidade do tempo e o crescimento sutil da nostalgia. Terra da água.

juremir@correiodopovo.com.br

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