quinta-feira, 20 de dezembro de 2007



Notas da poltrona

20 de dezembro de 2007 | N° 15454
Fernando Verissimo


Durante muito tempo, fui um torcedor de arquibancada.

A passagem do tempo se media pela quantidade de almofadas que eu levava para acomodar o traseiro no cimento. Ou na madeira, pois ainda peguei arquibancadas de madeira. Primeiro, nenhuma almofada. Traseiro jovem. Depois uma, depois duas...

Quando não podia mais conceber sentar numa arquibancada sem pelo menos três almofadas entre o cóccix e a realidade, decidi que o mais sensato era sentar numa poltrona.

Em casa. Desde então, a não ser pelas Copas do Mundo a que assisti ao vivo (todas desde a de 86), e nas quais meu traseiro foi sempre muito bem tratado, tenho sido um abjeto torcedor de TV. E, como tal, desenvolvi as fobias e implicâncias que todo torcedor de TV tem. Uma espécie de lista negra das poltronas.

Por exemplo: narrador que narra o evidente. "Fulano avança pela direita..." Estamos vendo que o Fulano não está indo para trás, está indo para a frente, e pelo lado direito. Narrador que perde tanto tempo descrevendo o que todo o mundo vê, que não cumpre a sua principal função, identificar o jogador com a bola.

Narradores, comentaristas e repórteres que falam sobre outra coisa enquanto o jogo se desenrola, e falam, e falam, não só ignorando o jogo como distraindo nossa atenção. Etc, etc.

Mas se tem uma figura que revolta as poltronas, contra a qual esbravejamos o tempo todo, é o diretor de imagens criativo. O que, no meio de uma jogada, foca a arquibancada, ou corta para um detalhe pitoresco - e mantém a imagem no ar enquanto nos contorcemos de ansiedade, tentando adivinhar como acabou a jogada.

Eu sei, toda transmissão de futebol na TV é um espetáculo e a criatividade do diretor é fundamental para que seja um espetáculo artisticamente satisfatório, não importa o que pensem os trogloditas. Mas não queremos arte. Queremos ver o jogo! Acho que falo por todos os trogloditas.

A não ser pela obrigação de acordar cedo no domingo, o jogo Milan e Boca foi do tipo com que as poltronas sonham. Não há no mundo esporte mais bonito do que o futebol bem jogado.

E como não dava para torcer nem pelo Berlusconi e nem por argentino, tivemos o luxo adicional da apreciação estética sem envolvimento - se bem que, confesso, ansiei por uma reação épica do Boca no final.

O Kaká foi magnífico, mas que jogador esse Seedorf. Acho que foi a primeira vez que vi alguém na sua posição não errar um passe durante um jogo.

E a imagem mais melancólica do dia (e nesse caso viva o diretor de imagens) foi a do Riquelme no último lugar em que deveria estar nesse domingo inesquecível. No meio da multidão, longe do gramado.

Nenhum comentário: