sábado, 15 de dezembro de 2007



16 de dezembro de 2007
N° 15450 - Luis Fernando Verissimo


O que vale

Mercedão prateado, forro de pele de lhama hermafrodita, alojamento separado para a criadagem, academia opcional, mas aí pensei: carros, com esse trânsito?

Estive pensando no que lhe dar de Natal, querida. Pensei numa ilha. Uma ilha inteira, com casa e ancoradouro. Ou, se você preferisse, heliporto. Mas aí pensei: você se sentiria obrigada a ir sempre à sua ilha.

Ter uma ilha não é como ter, assim, um castelo no Loire ou um apartamento em Miami, que você pode ir ou não ir, tanto faz. Uma ilha inteira seria um compromisso, você se sentiria obrigada a ir sempre. Eu não estaria lhe dando um presente, estaria lhe dando um remorso.

Um remorso magnífico, é verdade, com pavões e águas verdes, talvez um pequeno vulcão, mas um remorso assim mesmo. Também descartei o castelo no Loire e o apartamento em Miami. Banalidades, não.

Pensei num cruzeiro marítimo, a volta ao mundo num transatlântico só seu, 17 restaurantes, quatro orquestras, 10 piscinas e quinhentos marinheiros só para servir você, mas aí pensei: dar a volta ao mundo, do jeito que o mundo está?

Desisti do transatlântico e nem pensei num avião privê, porque aviões, por maiores que sejam - você não concorda? - mal têm espaço para as pernas, o que dirá sauna, piscina e cabeleireiro.

Pensei num Rolls Royce blindado, com bar e pianista, daqueles que o motorista tem motorista, ou então num Mercedão prateado, forro de pele de lhama hermafrodita, alojamento separado para a criadagem, academia opcional, mas aí pensei: carros, com esse trânsito? Eu só estaria lhe dando chiliques.

Pensei num conjunto de diamantes, mas... Jóias? Pinturas? Antigüidades? A coleção completa de um costureiro famoso e o costureiro junto, para fazer os ajustes? Muito óbvio. Um casaco de pele? Muito incorreto. Eu não gostaria de ver você perseguida na rua por defensores, ou parentes, do animal sacrificado.

Um perfume caríssimo? Um "Ravage moi", um "Penetration", um "Sacanage en general"? Muito evanescente. Pensei em lhe dar um chapéu, uma bolsa, um lenço, um guarda-chuva... E finalmente decidi: uma agenda, para as suas anotações.

Mas então pensei: ela vai fazer anotações na agenda com quê? Vou lhe dar uma Bic. Uma singela Bic, como prova do meu amor. É quase nada, eu sei. Mas como diz aquela frase, o que vale é a intenção, e a minha intenção era... Querida, onde você vai? Querida!

O carrasco

Pequena história, significando não sei bem o quê. Dizem que quando recebeu o Robespierre caído em desgraça para medi-lo para a guilhotina, o carrasco se surpreendeu.

- O senhor aqui?!

- Veja você - disse Robespierre. - Não faz muito, eu é que estava mandando gente para você executar. Agora o condenado sou eu. Mas isso é a política, um dia você manda, outro dia você é mandado. Inclusive para a guilhotina...

Ao que o carrasco disse:

- Felizmente, estou livre disso. Só eu sei manejar a guilhotina. Tenho o cargo mais estável da república.

- Aliás - disse Robespierre - fui eu que lhe contratei, lembra?

- Claro - disse o Carrasco - como poderia esquecer?

- Então me ajude a fugir - sugeriu Robespierre.

E o Carrasco sorriu e disse:

- Lembra por que o senhor me contratou? Porque eu era o servidor publico perfeito. Eficiente, cumpridor de ordens e incorruptível. Abra a camisa, por favor.

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