quarta-feira, 26 de dezembro de 2007



26 de dezembro de 2007 | N° 15460
David Coimbra


O bar em que as mulheres vão

As mulheres de Porto Alegre, não quaisquer mulheres, mas as donas das canelas mais lisas, dos cotovelos mais macios, as mulheres com hálito de chocolate branco, essas mulheres eram as que iam no Água na Boca, no fremir dos anos 80.

Essa qualidade de mulheres é dotada de uma característica tão espantosa quanto inexplicável - elas se movimentam em grupo, como se fizessem parte de um mesmo e imenso cardume. Um dia, por alguma razão, elas decidem adotar um bar.

Então, todas vão àquele bar. De uma noite para outra, o lugar é tomado por matilhas de mulheres cheirosas, caminhando cheias de confiança dentro de suas minissaias minúsculas, sustentadas por seus tornozelos tenros, debaixo de cabelos ondulantes e olorosos.

Por que razão optaram por aquele bar? Ninguém sabe. Não é pela qualidade da comida, nem do som, nem pelo atendimento, muito menos pelo preço.

Elas simplesmente resolveram ir para lá. E vão, aos magotes. São mulheres que não se conhecem, a maioria nunca se viu antes, mas vão todas ao mesmo lugar. Aí aquele bar se torna famoso na cidade.

Os homens, claro, também vão para lá, e as outras mulheres, as que não são tão graciosas, nem tão doces, nem tão viçosas, igualmente se achegam, só que em menor número, tímidas, desconfiadas, sem conseguir mesa para sentar.

Por determinado período, aquele bar é o bar. Lá, tudo acontece. Lá, tudo se dá. O bar é comentado, sai no jornal, seu dono ganha muito dinheiro.

Então, um dia, as gostosas, porque é isso que são, falemos sem eufemismos, elas são gostosas, então um dia as gostosas mudam de idéia. Trocam de bar. Evadem-se do bar antigo e partem para outro, sem motivo, sem lógica. Cansaram. Deu.

Isso acontece rapidamente. Num fim de semana, estão todas enfeitando um bar. No outro, cadê as florzinhas? Sumiram. Para onde foram? Leva semanas para que se descubra seu novo bar, em outro ponto da cidade.

Como se comunicaram? Será por telefone? Será que têm um grupo de imeils de gostosas? Uma comunidade no orkut? Será que publicam algum tipo de anúncio em código nos jornais? Alguém um dia precisa desvendar esse mistério.

Nos anos 80, durante longo tempo, o Água na Boca foi esse bar. O Bar Eleito.

O rei do bar

Nos anos 80, Renato Portaluppi era o rei do Água na Boca. Certo dia, na casa da mãe dele, na Zona Sul, Renato contou-me algumas de suas aventuras noturnas ocorridas, justamente, no palco penumbroso do "Água", como os antigos freqüentadores ainda chamam o bar, entre suspiros. Muitas impublicáveis, claro. Uma, mais leve, aconteceu com uma loirinha que era uma daquelas loirinhas.

Mas era uma loirinha! Meiga, doce, quase diáfana. E com namorado. Loirinhas que tais sempre estão com namorados. Aquela loirinha tinha um namorado grandão e tudo mais, só que não parava de olhar para o Renato.

Até que o Renato fez um gesto de cabeça para ela e ela o seguiu para os fundos do bar. Lá, entregaram-se a alguns minutos de travessuras, que acabaram em feroz felação, ao cabo da qual, Renato sussurrou-lhe ao ouvido:

- Agora, quero que tu voltes ao bar e beije teu namorado na boca. Ela obedeceu.

Renato era o Rei do Água, de fato.

O Rei do Rio

Alguém classificará Renato como um cafajeste. Não é. Trata-se de uma das melhores pessoas dentre as poucas boas pessoas que encontrei no futebol.

Belíssimo caráter, um homem leal, em quem se pode confiar. E foi um dos maiores jogadores que já fincaram os cravos da chuteira nas gramas verdes dos campos do Brasil.

Renato tinha força, habilidade e velocidade, concluía com precisão, sabia deslocar-se e procurar o espaço certo para o arremate. Mais: ele entendia o jogo. Sabia como proceder diante da adversidade.

Dias atrás, a TV reproduziu uma das grandes partidas das tantas grandes partidas das quais Renato foi, mais do que participante, protagonista.

O Fla-Flu decisivo do campeonato carioca de 1995. Ao Flamengo de Romário bastava o empate. O Fluminense de Renato precisava vencer. Durante a semana, os dois haviam se desafiado. Queriam ver quem era o melhor.

Renato venceu. Marcou um gol com o pé esquerdo e outro de barriga, nos 3 a 2 do Flu. Transformou-se de Rei do Água em Rei do Rio. Mas o que queria falar era não dos gols, e sim de um lance específico do jogo.

Uma cobrança de falta. Branco, então no Flamengo, estava em fase resplandecente, egresso da conquista do Tetracampeonato do Mundo, nos Estados Unidos. Numa falta cobrada antes dessa a qual me refiro, Branco acertou um pataço no travessão.

A falta seguinte era ainda mais próxima, ainda mais perigosa. Branco recuou a fim de tomar distância para o chute. Renato, que estava postado ao lado da barreira, correu e parou a um metro de Branco, entre ele e a bola.

Não infringiu a lei. Ficara à distância correta da bola, legalmente falando. Mas irritou Branco de tal forma que o desconcentrou. A cobrança saiu torta, chocha, como nunca saía uma cobrança de Branco.

O repórter que entrevistava Renato perguntou se aquela era uma manha típica de decisão. Renato concordou, e arrematou discorrendo sobre como o jogador diferenciado cresce numa final.

E é isso mesmo. A decisão, a final, o jogo de exceção é que dá a verdadeira medida de quem é quem no futebol.

Só uma decisão para separar os heróis dos farsantes. Pena que o maior campeonato do Brasil não tenha decisão. Pena que seja um campeonato feito para os farsantes.

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