quinta-feira, 13 de dezembro de 2007



NOTÍCIAS DA PATAGÔNIA

Passamos os últimos cinco dias na Patagônia, entre Ushuaia e El Calafate. Fomos, Cláudia e eu, com Michel Houellebecq. A viagem mostrou-se instrutiva e filosófica.

O 'fim do mundo' tem charme, neve, vinho e muito pingüim. É um lugar perfeito para indagações metafísicas. Depois de algumas horas num barco rumo ao Sul do Sul, é bastante fácil começar a perguntar pelo sentido da vida.

Tivemos muitas reflexões teológicas, discussões literárias, debates políticos e, vamos dizer assim, 'diálogos animais'. Houellebecq tem tradição em bestiários. Ele já fez isso de maneira edificante em 'Extensão do Domínio da Luta'. Vou tentar explicar em poucas frases o que isso significa.

Nosso primeiro 'diálogo animal' aconteceu no Canal de Beagle sob influência de Charles Darwin. Foi logo depois que Houellebecq decretou a superioridade da ciência sobre a religião e previu uma sociedade totalmente racional para um futuro não muito distante.

O barco, cujo sugestivo nome era Ezequiel, aproximou-se de uma pequena ilha dominada por pingüins e lobos-marinhos. Aí começou o problema: eram focas, lobos-marinhos, lontras-marinhas ou elefantes-marinhos?

Os nossos conhecimentos não coincidiam com as fotos nas brochuras de divulgação. É bem verdade que entre uma foca e um elefante, mesmo no mar, só pode haver uma diferença de peso.

Michel Houellebecq ficou um bom tempo em silêncio observando os pingüins e os lobos-marinhos (decidimos chamá-los assim para seguir em frente). Parecia mais absorto do que quando argumentava sobre o destino da humanidade. Havia um brilho estranho no seu olhar claro.

Finalmente, com um cigarro queimando-lhe os dedos, sentenciou: 'Não resta dúvida, eu prefiro os pingüins.

Esses lobos-marinhos não dão bons exemplos. Passam o dia sem fazer nada. Ficam esparramados nas pedras como vagabundos nos sofás. Não gosto deles'. Objetei que os pingüins não se mostravam mais ocupados nem com ar mais inteligente.

A minha arguta observação levou-o a um momento de hesitação. Como todo bom intelectual cartesiano, resolveu duvidar de si mesmo e pediu tempo para novas observações. Ficou mais meia hora meditando na parte externa do barco.

Quando voltou, tinha um jeito de quem chegara a uma conclusão irrefutável: 'Os pingüins são melhores', declarou. 'São inteligentes, simpáticos, esforçados e bonitos.' Garanti-lhe que estava sendo extremamente subjetivo, algo inaceitável para um discípulo de Auguste Comte.

Senti que ficara na defensiva.

Voltamos para Ushuaia tentando estabelecer as diferenças entre Balzac e Flaubert, Céline e Proust, Baudelaire e Rimbaud. Michel Houellebecq falava com leveza, quase sussurrando, como é do seu jeito, sobre esses monstros da literatura universal.

Riu antes de assegurar que é melhor escritor do que Céline. Ficou muito sério ao explicar que Marcel Proust é sublime, inimitável e eterno. Trocamos de assunto.

Falamos dos Kirchner. Michel nunca tinha ouvido falar na senhora Kirchner. Quando estávamos a uns cem metros do cais ele voltou ao assunto que parecia não abandonar a sua mente de grande escritor: 'Os pingüins são superiores às focas e aos lobos-marinhos.

Gosto deles desde quando eu tinha uns 6 anos. Eles estampam superação'. Só me restou comprar um pingüim para a minha geladeira. Então, falamos de morte, loucura e arte.

juremir@correiodopovo.com.br

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