sexta-feira, 14 de dezembro de 2007



14 de dezembro de 2007
N° 15448 - David Coimbra


Filhos da escravidão

Uma amiga minha caiu no golpe do seqüestro por telefone. Mulher inteligente, bem informada, mas caiu. É que a filha dela já havia sido seqüestrada antes. Seqüestro mesmo, com arma na cabeça e tudo mais.

Então, quando aquela voz chorosa de mulher ligou implorando por socorro, ela desabou. Acreditou na hora. Depois, o bandido foi monitorando-a por telefone. Tinha absoluto domínio psicológico sobre ela, conduziu-a sob seu poder até o banco, onde o gerente desconfiou.

O que havia acontecido? Por que ela chorava? O gerente salvou-lhe do desfalque com uma única ligação para a filha, que estava no recôndito do lar, bela e tranqüila, ouvindo um rock suave na Itapema.

Encerrado em uma cela de presídio, a três Estados de distância, por telefone, um sujeito desses interpreta vozes diferentes e mantém uma cidadã com terceiro grau completo mesmerizada durante duas horas.

Esse mesmo tipo, dê-lhe uma colherinha de chá e ele cava um túnel sob a cadeia, uma obra de engenharia perfeita, com vigamento, iluminação e sistema de ventilação, e por ela escapa para a liberdade.

Nunca alguém ouviu falar de um túnel de presidiários que desabasse, de um fugitivo que morresse soterrado em sua obra, nunca.

São homens admiráveis, de criatividade e iniciativa. Por que estão a serviço do crime, e não produzindo para a sociedade? Por que não são eles os empreendedores do Brasil?

Durante 300 anos, o empreendedorismo, mais do que inibido, era proibido na colônia. Os portugueses vinham cá, extraíam a riqueza que podiam e voltavam em suas caravelas para gozá-la no ultramar.

Depois de o Brasil ter sido fundado como nação, em 1808, o Estado continuou ocupado pela classe dirigente portuguesa, que vivia do escravagismo e que, por isso mesmo, considerava o trabalho um ultraje. O Estado servia para que a elite se servisse dele.

O escravo e o liberto, já a maioria da população, nada podiam esperar do Estado, viviam de expedientes, aprenderam que à margem da sociedade tinham mais chances do que incluídos nela.

O imigrante europeu, esse, sim, com tradição empreendedora, também se desenvolvia ao largo do Estado, e apesar do Estado, abandonado que foi nos ermos do continente, em comunidades onde reproduzia seu país de origem até na língua.

E assim foi, mesmo depois da República, mesmo depois de a nobreza lusitana ter se apartado do poder. O Estado brasileiro sempre esteve tomado por um grupo, sempre atendeu a interesses de uma pequena parcela da fidalguia nacional, fossem os usineiros do Nordeste, fossem os produtores rurais de São Paulo e Minas, fosse a classe industrial forjada pelos imigrantes europeus.

Enquanto isso, os descendentes dos escravos continuavam pendurados nas franjas da sociedade, sobrevivendo de artifícios. É isso que o cidadão brasileiro aprendeu desde sempre: que viver ao arrepio da lei é mais lucrativo e é mais fácil.

E é assim que se chega ao golpista por telefone, ao engenheiro de túnel de presídio. Ele exercita sua criatividade e sua iniciativa à parte do Estado, porque o Estado não lhe é atraente.

É essa criatividade, é essa iniciativa que teriam de ser aproveitadas pelo Estado brasileiro, um Estado que tem só 18 anos de legitimidade, que só passou a representar de fato o cidadão comum depois de 1989.

Muito pouco tempo, claro que é. Mas talvez o suficiente para se aprender que só com Educação é que o Brasil um dia poderá contar com o talento, a força e a imaginação dos filhos da escravidão.

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