sábado, 22 de dezembro de 2007



22 de dezembro de 2007
N° 15456 - O Prazer das Palavras | Cláudio Moreno


Aspira

No filme Tropa de Elite, o capitão Nascimento, novo herói da maioria silenciosa brasileira, passa o tempo todo chamando o soldado novato de aspira, que nada mais é do que a redução do vocábulo aspirante.

Ora, como tudo o que acontece de novo ou estranho aqui nesta Pindorama é atribuído imediatamente ao imperialismo americano, não faltou quem me escrevesse pedindo que eu denunciasse mais essa ação insidiosa da Norte América - como dizia minha saudosa avozinha - contra a nossa indefesa cultura:

"Todo o mundo sabe que "eles" é que têm essa mania de encurtar as palavras, usando gas por gasoline, pop por popular, exam por examination ou lab por laboratory. E não deu outra: agora chegou a vez de nossos colonizadinhos imitarem a metrópole!".

Sinto dizer-te, indignado leitor, que esse hábito de truncar as palavras não veio "deles" (as aspas aqui indicam que o pronome deve ser pronunciado com aquele olho arregalado e ar conspiratório dos vilões do cinema mudo), mas sim da tendência natural que tem o ser humano de economizar a energia que despende em qualquer atividade.

Americanos, espanhóis, italianos, brasileiros - uns mais, outros menos, todos adotam o mesmo procedimento, a que chamamos, entre outros nomes, de truncamento ou abreviação vocabular.

Os campeões são, sem dúvida, os jovens franceses, que produzem incessantemente novas reduções desse tipo: dico (dictionnaire), écolo (écologiste), anarc (anarchiste), manif (manifestation), aristo (aristocrate), pédé (pédéraste), sympa (sympathique), pub (publicité), entre centenas de outros.

Até a metade do século 20, este processo de encurtamento teve uma discreta presença em nosso país. Era aplicado principalmente àqueles poucos vocábulos técnicos ou eruditos, compostos por elementos gregos ou latinos, que começavam a fazer parte do vocabulário de qualquer brasileiro.

O princípio é simples, e vale também para composições musicais, programas de computador ou textos literários: quando o número de usuários aumenta, há uma pressão irresistível para a simplificação.

O mundo culto convivia razoavelmente com vocábulos como fotografia, pneumático ou quilograma, de grafia e pronúncia complexas;

no entanto, quando o progresso levou essas invenções a todas as classes sociais, em todo o território nacional, essas palavronas incômodas foram naturalmente reduzidas para foto, pneu e quilo, passando a ter um padrão prosódico muito mais confortável para os falantes.

O fato de não ter ocorrido o mesmo processo com bibliografia, pneumotórax e quilowatt, por exemplo, deve-se à pequena ocorrência desses vocábulos na linguagem usual (pelo menos até agora).

Com a aproximação do novo milênio, contudo, a criação dessas novas formas foi intensificada, ao mesmo tempo em que se expandiu a gama dos vocábulos abreviados.

Além de agir sobre compostos eruditos ou exóticos que se popularizaram - metrô (metropolitano), zôo (zoológico), brique (bricabraque), pólio (poliomielite), eco (ecografia), inox (inoxidável) - , o mesmo princípio começou a atuar também sobre uma série de palavras amplamente utilizadas no âmbito familiar, sugerindo que a economia, muito mais do que a facilitação da pronúncia, agora passara a ser o seu maior objetivo.

A bisavó virou bisa, a bicicleta virou bíci, o supermercado virou súper, a bergamota virou berga, o chimarrão virou chima, o refrigerante virou refri, a depressão virou deprê, a minissaia virou míni.

Como se diz na Campanha, estava aberta a porteira, e dezenas de palavras reduzidas ingressaram na linguagem quotidiana do jovem brasileiro (em Portugal, o processo ainda não é expressivo):

churras (churrasco), cerva (cerveja), caipa (caipirinha), findi (fim-de-semana), lega (legal), vestiba (vestibular), neura (neurose), nóia (paranóia), profe (professor), visu (visual), frila (free-lancer), infra (infra-estrutura).

Com sentido fortemente pejorativo, politicamente incorretíssimas, surgiram salafra (salafrário), analfa (analfabeto), comuna (comunista), delega (delegado), estranja (estrangeiro), flagra (flagrante), granfa (grã-fino), vagaba (vagabunda), muca (muquirana), dosa (empregadosa), portuga (português) e, indispensável à vida do brasileiro, o conhecido purfa (por fora).

Podemos escrever assim? Em princípio, não. A maioria dessas palavras vai ficar restrita à gíria ou à linguagem coloquial, mas algumas delas - principalmente as que não têm carga despectiva - certamente vão ingressar no nosso vocabulário padrão.

Não tenho dúvida de que falta muito pouco para palavras como pornô, máxi, míni, múlti, micro, giga, etc. alcançarem o status conquistado por foto, moto ou fone. Isso é bom para o idioma?

É evidente que sim; na minha contabilidade, a língua só empobrece quando perde, jamais quando ganha novas formas.

Professor, doutor em Letras

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